Pesquisador da Embrapa destaca que país produz vinho o ano todo, mesmo com uma oscilação de temperatura de 25 a 45 graus.
Com vinhedos localizados em uma região de clima tropical semiárido que permite duas colheitas por ano para a produção de vinhos tropicais, o Brasil sai na frente na adaptação das variedades de Vitis vinífera às mudanças climáticas. A análise é de Giuliano Pereira, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, que estuda a cultura há 24 anos.
O especialista se refere especificamente à região do Vale do São Francisco, entre os estados da Bahia e Pernambuco, no eixo Petrolina-Juazeiro. Mesmo com uma oscilação de temperatura de 25 a 45 graus, a região se tornou um pólo importante de produção de uvas para vinhos finos no país.
“Os vinhedos do Vale do São Francisco se tornaram um laboratório permanente de estudo dos impactos das mudanças climáticas, com o reconhecimento desse fato em congresso mundial da OIV (Organização Internacional do Vinho). A videira no Vale produz duas vezes por ano e o produtor escolhe quando quer podar e quando quer colher.”
Pereira destaca que o Brasil, mesmo sendo novo no mercado milenar dos vinhos finos, leva vantagem também por ter duas outras macrorregiões de produção vinífera com manejos diferentes que garantem o enfrentamento de quaisquer efeitos danosos de um eventual aquecimento global e de mudanças climáticas drásticas.
Além do Vale do São Francisco, o Brasil produz vinhos finos na região sul do país, cultivo mais tradicional e responsável por cerca de 80% do vinho nacional, e na região Sudeste, com destaque para cidades mineiras da região da Serra da Mantiqueira, que produz os chamados vinhos de inverno.
A Miolo, grande fabricante nacional com sede no coração do Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, foi uma das empresas que identificou a vocação do Vale do São Francisco e estrategicamente comprou a Fazenda Ouro Verde, no distrito de Santana do Sobrado, em Casa Nova (BA), para instalar uma nova unidade em 2001.
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“A Vinícola Terra Nova fez parte do nosso plano de expansão e exploração de novos terroirs, adaptando o cultivo de variedades de acordo com o que de melhor cada região pode entregar ao vinho”, diz Daniel De Paris, gestor da Miolo Terranova.
Na fazenda baiana são cultivados 200 hectares das variedades grenache, shiraz, mouvedre, tempranillo, sauvignon blanc, trebbiano, french colombard, moscato Itália e chenin blanc. Um dos destaques em adaptação é a uva grenache, citada por enólogos como Jorge Lucki, comentarista da rádio CBN como a “uva do futuro” por aguentar condições de temperatura mais elevadas.
“As condições climáticas do terroir nordestino influenciam muito nas escolhas das variedades a serem cultivadas. Em todas as unidades, a Miolo mantém uma área de testes para avaliar o maior número possível de variedades. As que são aprovadas vão para o plantio em grande escala”, diz o executivo da Miolo, acrescentando que geralmente as variedades plantadas em regiões de clima quente no mundo se adaptam bem no Vale do São Francisco.
A amplitude térmica na região da Terra Nova, que está numa altitude de 350 metros, fica entre 12 e 15 graus. O gestor, que também é enólogo, diz não ter dados de temperaturas de 45 graus nos vinhedos, mas destaca que em alguns dias já chegou a 40 graus.
Ele lembra que a regra clássica de que as videiras precisam de 400 horas por ano com temperatura abaixo de 7 graus é ignorada na Terra Nova. “A irrigação é a grande chave para a viticultura na região e usamos as mais avançadas tecnologias de controle e acompanhamento do vinhedo.”
A Terra Nova faz duas colheitas anuais: uma no primeiro semestre, chamada colheita de inverno-primavera, e outra no segundo, a primavera-verão. A produção anual é de 3 mil toneladas de uvas ou 3 milhões de garrafas, sendo 85% de espumantes e 15% de vinhos finos. O volume é quase um terço da produção total da Miolo (10 mil toneladas de uvas) que, além da sede, tem outras duas unidades no Rio Grande do Sul. Na Bahia, são produzidos vinhos jovens e de guarda, com destaque para o Testardi Shiraz, um dos ícones da Miolo.
Outro negócio que avança na Terra Nova é o enoturismo. A vinícola recebe visitantes diariamente e mantém uma parceria com a embarcação Vapor do Vinho, que leva turistas para passeio no rio São Francisco e visitação e degustação na vinícola. “Chegamos a receber 30 mil turistas por ano”, diz o executivo da Miolo.
Região Sudeste
O agrônomo Murillo Albuquerque, considerado o pai da técnica de duas podas que permitiu a produção dos vinhos de inverno no Sudeste, diz que não houve mudanças climáticas impactantes em Minas desde 2003, quando o novo manejo foi adotado. Mas, ele prevê que, se em 50 ou 100 anos a temperatura subir 2 ou 3 graus, haverá mudança no padrão sensorial dos vinhos.
“Minas Gerais vai passar a produzir vinhos com o perfil sensorial do vinho produzido em Ribeirão Preto, o de Ribeirão vai ficar como o de Petrolina e o de Petrolina vai virar conhaque”, brinca o especialista que trabalha com uvas viníferas há 35 anos e hoje, além de uma vinícola, é dono de um viveiro de mudas.
Segundo ele, o que permitiu a produção de vinhos de qualidade, com menos acidez e mais frescor em cidades de Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Bahia e até Mato Grosso com dias ensolarados e noites frias foi o pacote tecnológico criado por sua equipe na Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) que inverteu a colheita para o período mais seco, entre maio a agosto, e adotou cultivares mais compatíveis. A syrah, mais adaptada a climas quentes, foi a coringa dessa transformação e ainda domina os vinhedos da produção de inverno, estimada em 1 milhão de garrafas por ano.
Pesquisas
Em 2020, um estudo com 101 variedades de uvas viníferas liderado pelos pesquisadores Ignacio Morales-Castilla, da Universidade de Alcalá na Espanha, e Elizabeth Wolkovich, da Universidade de British Columbia, em Vancouver (Canadá), alertou o mundo do vinho ao apontar que, se as temperaturas subirem 2 graus, as regiões do mundo que hoje são adequadas para o cultivo de uvas para vinho podem encolher em até 56%. Com 4 graus de aquecimento, 85% dessas terras não seriam mais capazes de produzir vinhos de qualidade.
A boa notícia para quem não dispensa o prazer de degustar um bom vinho é que o mesmo estudo apontou que a seleção de variedades mais adaptáveis permitiria reduzir pela metade os impactos no caso de um aquecimento de 2 graus e reduziria um terço se a temperatura subisse 4 graus.
Como as uvas amadurecem mais rápido em climas mais quentes, o vinho produzido nessas regiões pode ser menos ácido, mais doce, mais alcoólico e ter cor mais escura. Cada variedade de uva se sai melhor em climas diferentes, e as mudanças de temperatura e as mudanças sazonais afetam o modo como elas crescem e amadurecem, bem como a qualidade do vinho que produzem.
Segundo o estudo, na região francesa da Borgonha, por exemplo, a mouvedre e a grenache, que gostam de calor, poderiam substituir as variedades atuais, como a pinot noir. Em Bordeaux, as uvas cabernet sauvignon e merlot poderiam ser substituídas pela mouvedre.
Pereira, da Embrapa, não acredita que as mudanças climáticas vão provocar o fim do cultivo de uvas viníferas em alguma região produtora do mundo. “O aumento de temperatura pode mudar o tipo de vinho. Pode migrar de um vinho de mais qualidade e preço para um inferior, perdendo mercado e preço, ou pode acontecer exatamente o contrário.”
Segundo o especialista, a videira é uma planta muito versátil, mas dois fatores têm que ser trabalhados intensivamente por produtores interessados em se manter na atividade diante das mudanças climáticas: redução da emissão de gases e adaptação de variedades.
A pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) Cristina Pandolfo concorda com o colega. Segundo ela, o cultivo das uvas viníferas não deve ficar inviável nas regiões produtoras, mas haverá uma alteração do padrão ou tipo de fruto a ser produzido e isso será acompanhado da necessidade de um manejo diferenciado no pomar até a vinificação. “A escolha de variedades com maior plasticidade frente às mudanças climáticas é fator preponderante no sucesso da atividade no futuro.”
Pandolfo é uma das autoras de um estudo do impacto das mudanças climáticas projetadas para os anos de 2050 e 2070 na produção das uvas viníferas em Santa Catarina. A conclusão do estudo é que deve haver uma redução da área potencial de cultivo de variedades de uvas que exigem mais frio e uma mudança na distribuição espacial da área potencial de cultivo para regiões mais frias do que as da produção atual.
Entre as medidas para mitigar as mudanças climáticas, a agrônoma cita a seleção de materiais genéticos mais adaptados às condições de estresses hídricos e térmicos, o uso de sistemas de informação climática e monitoramento agrometeorológico para apoiar a aplicação racional de defensivos agrícolas quando necessário e a melhoria e conservação da água no solo.
André Gasperin, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), diz que a produção brasileira no sul do país já tem sido impactada nos últimos cinco anos pelos fenômenos La Niña e El Niño, que definem se vai haver muita chuva ou seca. “Não há consenso entre os climatologistas se isso é uma tendência de longo prazo ou um fenômeno que pode mudar no próximo ano, mas o fato é que algumas regiões onde a produção de vinho era impraticável pelo regime de chuvas já se tornaram viáveis.”
Gasperin destaca que embora o Brasil seja um país novo no mundo da viticultura, o importante para manter uma boa produção é investir em variedades adaptadas e tecnologia de cultivos, como o controle hídrico da produção.
Fonte: Globo Rural