Estudo revela implicações preocupantes no uso de subprodutos da cannabis na alimentação animal. Fato comprovado é que, vacas alimentadas com cânhamo ficam chapadas e produzem leite com THC. E quem toma o leite?
Com o crescimento da indústria da cannabis, especialmente para a produção de canabidiol (CBD), surgiu a ideia de utilizar os resíduos do cânhamo industrial como alternativa na alimentação de gado leiteiro, minimizando o desperdício. No entanto, um estudo recente conduzido pelo Instituto Federal Alemão de Avaliação de Riscos revelou que essa prática pode trazer efeitos adversos significativos para os animais e potenciais riscos à saúde humana.
As vacas alimentadas com cânhamo de alta concentração de compostos psicoativos, incluindo o tetrahidrocanabinol (THC), apresentaram comportamentos alterados e níveis detectáveis de canabinoides no leite, o que levanta preocupações sobre a viabilidade dessa prática. Para esclarecimento, o cânhamo e a maconha não são a mesma coisa. Ambos são da mesma classe de plantas do gênero Cannabis, mas se distinguem por seu nível de tetrahidrocanabinol (THC). O cânhamo legal deve conter 0,3% de THC ou menos; ou seja, o cânhamo não pode deixá-lo chapado.
O estudo: cânhamo e vacas leiteiras
Pesquisadores alemães alimentaram dez vacas leiteiras com cânhamo industrial por 28 dias, com resultados interessantes em termos de saúde animal e possíveis risco para os consumidores de leite.
O experimento foi dividido em quatro períodos: controle, adaptação, exposição e depuração. Os autores do estudo realizaram o experimento substituindo uma dieta à base de milho por dois tipos de silagem de cânhamo.
O experimento analisou os efeitos da alimentação de vacas leiteiras com dois tipos de cânhamo:
- Silagem de cânhamo com baixos níveis de THC, usando a variedade Ivory com baixo teor de THC
- Silagem de cânhamo com alto teor de THC, usando a variedade Finola
⚠️ Ambas as variedades de cânhamo não excedam THC acima de 0,2%
As vacas foram monitoradas e avaliadas quanto à produção de leite, comportamento e saúde geral. No grupo alimentado com cânhamo de alta concentração, os pesquisadores detectaram altos níveis de THC no leite, além de mudanças significativas no comportamento dos animais.
“Encontramos níveis de canabinoides no leite que poderiam oferecer riscos apreciáveis à saúde humana caso fossem consumidos regularmente”, afirmou Robert Pieper, coordenador do estudo.
Comportamento alterado: vacas ‘entorpecidas’?
As vacas alimentadas com cânhamo de alta concentração apresentaram sintomas atípicos:
- Sonolência: Animais permaneciam longos períodos imóveis e bocejando frequentemente.
- Alterações fisiológicas: Respiração e frequência cardíaca reduzidas, condições normalmente observadas em doenças graves.
- Posturas incomuns: Permanência prolongada na mesma posição, sinalizando possíveis efeitos sedativos.
Os comportamentos incomuns pararam alguns dias depois que as vacas deixaram de se alimentar de silagem de cânhamo, embora os canabinóides persistissem no leite, contendo altas concentrações de THC, CBD e outros canabinóides.
Michael Kleinhenz, da Universidade Estadual do Kansas, alerta que as mudanças observadas podem ser atribuídas não apenas ao THC, mas também a outros canabinoides presentes no cânhamo. Ele acrescenta:
“Embora esteja claro que os efeitos observados da silagem de cânhamo industrial na saúde animal foram causados principalmente pelos canabinóides, não pode ser claramente definido qual canabinóide foi o responsável. Devido à sua alta concentração na silagem rica em canabinóides, o THC é a causa mais provável, mas os efeitos combinados também podem desempenhar um papel”, disse.
Durante o período de exposição a um nível mais alto de THC, as vacas produziram leite contendo concentrações de até 316 mg (microgramas) de THC e 1.174 microgramas de CBD por kg de leite, enquanto as concentrações de outros canabinóides não foram suficientemente altas para serem detectadas. Em comparação, a União Europeia estabeleceu o máximo de THC nos alimentos em 3 mg por kg para produtos secos e 7,5 mg por kg para óleo de semente de cânhamo.
“O cenário de exposição com base nos dados obtidos do estudo de transferência mostra que a exposição ao ∆9-THC via leite e produtos lácteos pode levar a que a ARfD [dose de referência aguda] seja excedida em alguns grupos de consumidores”, diz o estudo.
Implicações para a saúde pública
O estudo destacou que o leite produzido por vacas alimentadas com cânhamo rico em canabinoides contém níveis de THC que podem ser potencialmente perigosos para o consumo humano. Segundo diretrizes da Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar, a exposição a altos níveis de THC pode causar efeitos adversos significativos, como alterações no sistema nervoso central.
Esses achados ressaltam a necessidade de regulamentações rigorosas antes de considerar o cânhamo como um ingrediente de ração para vacas leiteiras. Atualmente, nos Estados Unidos, o uso de subprodutos de cânhamo na alimentação animal é ilegal devido à falta de dados conclusivos sobre seus efeitos.
Benefícios e desafios do uso de resíduos de cânhamo
Embora o cânhamo industrial tenha ganhado popularidade após sua legalização pela Farm Bill de 2018 nos EUA, a utilização de seus resíduos em ração animal apresenta tanto vantagens quanto desafios.
Benefícios potenciais:
- Redução do desperdício de subprodutos da indústria de CBD.
- Possibilidade de criar uma fonte alimentar alternativa e sustentável para o gado.
Desafios identificados:
- Baixa palatabilidade: Vacas consomem menos ração contendo resíduos de cânhamo, o que pode impactar a produtividade a longo prazo.
- Riscos à saúde animal: Sinais de inflamação leve e possível diminuição na eficiência hepática foram observados em vacas alimentadas com cânhamo.
- Preocupações com a saúde humana: A transferência de canabinoides para o leite requer estudos adicionais para avaliar os riscos de consumo.
O que dizem os especialistas?
Pieper ressalta que ainda não está claro quais compostos específicos do cânhamo causam os efeitos observados. “A planta contém diversos canabinoides, e o impacto combinado desses compostos em vacas leiteiras é pouco compreendido”, afirma.
Enquanto isso, Kleinhenz destaca a necessidade de mais pesquisas antes de adotar o cânhamo como ração animal. “Esse estudo fornece dados valiosos para as agências reguladoras, mas ainda é cedo para tirar conclusões definitivas.”
Cânhamo como ração animal, um futuro incerto
Os resíduos de cânhamo apresentam potencial como alternativa sustentável na pecuária, mas o estudo expõe preocupações sérias sobre seus efeitos na saúde animal e na segurança alimentar.
Embora os dados sejam promissores em relação à viabilidade econômica do uso do cânhamo, questões relacionadas ao bem-estar animal e à qualidade do leite exigem maior investigação. Regulamentações mais rígidas e novos estudos serão essenciais para determinar se, um dia, o cânhamo poderá realmente ser integrado à cadeia alimentar de maneira segura e eficaz.
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