Diferentes cenários mostram como o trigo avança no Cerrado do Brasil; trigo tem sido utilizado como alternativa na rotação de culturas com grãos e hortaliças
Com uma área próxima a 450 mil hectares na safra 2024, o trigo tropical vem ganhando espaço no Cerrado nos últimos anos. O cultivo está crescendo em diferentes ambientes, onde cada região tem particularidades que orientam o avanço da triticultura tropical no Brasil. Veja na reportagem como evolui a produção e a comercialização de trigo nos estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás e Distrito Federal.
Na produção agrícola do Brasil Central, o trigo tem sido utilizado como alternativa na rotação de culturas com grãos e hortaliças para quebra do ciclo de pragas e doenças. A geração de tecnologias e a transferência de conhecimentos garantiram o crescimento de 119% na área e de 95% na produção de trigo tropical nos últimos sete anos (Conab 2018-2024).
O crescimento é resultado da oferta de cultivares e conhecimentos em manejo, desenvolvidos por diferentes empresas que atuam na pesquisa e na assistência técnica em trigo tropical.
“Plante trigo para colher feijão”
Para produzir feijão na região de Goiás, foi preciso encontrar uma cultura capaz de interromper o ciclo de doenças como antracnose, fusariose, mofo branco ou, ainda, nematoides no solo, além de fazer a recuperação do solo. “O cultivo de feijão estava se tornando inviável no começo dos anos 1990. Apesar do bom preço, as produtividades vinham decrescendo nas áreas com monocultivo de feijão. Precisávamos aprimorar o sistema de rotação de culturas e o trigo surgiu como a melhor alternativa”, conta o engenheiro agrônomo da Coopa-DF, Cláudio Malinski.
Além da disponibilidade de sementes e a garantia da compra do trigo produzido, a cooperativa iniciou uma campanha com o slogan “Plante trigo para colher feijão”, explicando tecnicamente a importância de inserir o cereal de inverno no sistema de produção. “Mais tarde, o trigo mostrou benefícios também para a soja, ajudando no controle de plantas daninhas como buva e capim amargoso. Temos resultados de até seis sacos a mais de soja após o cultivo do trigo”, conta Cláudio.
A entrada do trigo na Coopa-DF levou à construção do moinho, em 1994, que passou a agregar ainda mais valor à produção. Hoje o trigo representa 9% do volume de grãos que a cooperativa recebe e 33% no faturamento geral. “Sem o trigo, seria impossível manter o sistema produtivo com grãos na região”, conclui Cláudio Malinski.
Trigo como protagonista
Entre os cooperados da Coopa-DF, estão os produtores Paulo Bonato e o filho Luis Felipe Bonato, com fazendas de grãos em Cristalina/GO e Planaltina/DF. Na rotação, estão culturas como soja, milho, feijão e trigo (sequeiro e irrigado). “Meu pai e meu avô trabalhavam com hortaliças também. Financeiramente, produzir hortaliças é mais vantajoso, mas agronomicamente não é sustentável no longo prazo”, explica Paulo Bonato.
O trigo irrigado, chegou no sistema de produção da família Bonato há 30 anos, com gradual evolução na área destinada ao cultivo. Nos anos 1990, eram 50 hectares (ha), passando para 100 ha nos anos 2000, chegando a 200 ha em 2024. “O tamanho da área pode aumentar ou diminuir, mudando em função da rotação dos pivôs”, conta Paulo Bonato, lembrando que “à medida em que a área aumenta, também aumentam os problemas, já que a pressão no ambiente resultou na maior incidência de doenças, como a brusone”. A estratégia do produtor para escape da brusone (principal doença do trigo tropical) foi ajustar a data de semeadura, semeando o trigo de sequeiro após 10 de março e o trigo irrigado após 10 de maio.
A colheita em 2023 chegou a 27 sacos por hectare (sc/ha) de média no trigo de sequeiro e a 138 sc/ha no trigo irrigado. “O rendimento mais baixo no trigo de sequeiro é compensado pela qualidade e o menor custo, além da palhada que o trigo deixa para próxima cultura, ajudando a reduzir plantas daninhas que são de difícil controle em outras culturas”, afirma o produtor, lembrando que o custo de produção no trigo irrigado pode chegar a 100 sc/ha, contabilizando até seis aplicações de fungicidas, enquanto no sequeiro, algumas vezes, o custo empata com os ganhos, mas o trigo acaba trazendo benefícios para o sistema de produção.
Em função do trigo, a família Bonato fez ajustes no sistema de irrigação para suprir a demanda que atinge cerca de 500 mm de água por hectare no trigo irrigado. “Investimos em sensores que monitoram a umidade do solo para acionar os pivôs. Um sistema que reduz o consumo de água e de luz, além de suprir o trigo no momento de maior demanda das plantas”, explica Luis Felipe Bonato.
Rotação com hortaliças
Em diversas regiões do Cerrado, o trigo irrigado é utilizado na rotação com culturas como feijão e hortaliças, como batata, cenoura, cebola e alho. “O trigo é candidato preferido na rotação porque reduz os principais problemas no cultivo, já que consegue quebrar o ciclo de doenças de solo, como a podridão de esclerotínia ou mofo branco e a fusariose, além de inibir a multiplicação de determinados nematoides”, explica o pesquisador da Embrapa Trigo, Jorge Chagas.
A sede da cooperativa Coopadap está localizada em São Gotardo, MG. A cidade é conhecida como “capital nacional da cenoura” e responde por aproximadamente 70% da produção nacional de cenoura. Em 2023, os cooperados da Coopadap cultivaram 1.300 hectares de cenoura e 1.600 hectares de alho, culturas de alto valor agregado que movimentam a economia da região, cuja produção é destinada ao mercado nacional e internacional. O trigo irrigado foi utilizado em 3.800 hectares, principalmente nas áreas para rotação de culturas.
De acordo com o gerente de pesquisa da Coopadap, Luciel Dezordi, a rotação beneficia tanto o trigo quanto as hortaliças. “O trigo consegue aproveitar o residual de adubo deixado pela cenoura, formando uma lavoura de menor custo com alto potencial de rendimento. Por outro lado, as raízes do trigo podem chegar a quase um metro de profundidade, melhorando o solo para o cultivo das hortaliças”, diz Luciel.
Seca ainda é o maior adversário
A região do Cerrado é marcada por duas estações: a estação das águas (primavera/verão) e a estação seca (outono/inverno). A semeadura do trigo começa no final das chuvas, nos meses de março e abril no cultivo de sequeiro, e de abril a junho no cultivo irrigado. “Antecipar esta semeadura, aumenta os riscos para a incidência de brusone, mas se protelar muito, falta água para implantar a lavoura e pode comprometer o desenvolvimento das plantas”, explica o pesquisador Vanoli Fronza, da Embrapa Trigo.
Segundo ele, o clima quente e seco dos últimos anos tem desafiado o manejo do produtor: “A chuva cessou mais cedo neste ano, prejudicando o desenvolvimento das plantas e causando queda no peso do hectolitro (PH), resultando em grãos pequenos e leves no trigo de sequeiro. O calor também acelerou o ciclo das plantas, antecipando a colheita”.
Na Fazenda Jaguarandi, em Ponta Porã, MS, foram cultivados 1.890 ha com trigo de sequeiro nesta safra mas, com apenas 70mm de chuvas, muitas áreas precisaram ser replantadas. “No ano passado, a média de produtividade ficou em 50 sc/ha e neste ano fechou em 15 sc/ha”, lamenta o responsável técnico da fazenda, Rodrigo do Amaral. Apesar da frustração, o trigo deverá seguir dividindo espaço com o milho na rotação de culturas no inverno: “Sabemos a importância da gramínea no inverno para manter os rendimentos da soja no verão e não podemos apostar somente no milho. É preciso diversificar para diluir os riscos”, diz Rodrigo.
Na Unidade de Beneficiamento de Sementes (UBS) da Coopadap, o responsável Marcelo Guerra também sente os impactos do clima seco e quente que está afetando o trigo no Cerrado: “Historicamente, o trigo chegava na UBS nos meses de julho e agosto. Nas últimas safras, estamos recebendo trigo a partir de junho, prolongando o tempo que as sementes ficarão guardadas. As temperaturas mais altas no inverno também favoreceram os carunchos, exigindo, pela primeira vez, investimento em expurgo para controle de pragas nos grãos armazenados”.
Em 2023, a média de rendimentos do trigo de sequeiro em MS foi de 46 sc/ha, enquanto em 2024 ficou em 18 sc/ha. O calor também aumentou a evaporação da água no cultivo irrigado, aumentando os custos de produção. Em geral, a média de produtividade nas lavouras de GO, MG e DF deverá oscilar entre 30 sc/ha nos cultivos de sequeiro e 115 sc/ha no trigo irrigado.
O desenvolvimento de cultivares mais adaptadas à seca e ao calor é imperativo nos programas de melhoramento genético para trigo tropical. O crescimento na oferta de cultivares passou de 17 na década de 1990 para 33 cultivares em 2023. Para o pesquisador Joaquim Soares Sobrinho, a cultivar de trigo de sequeiro BRS 404, lançada em 2015, é uma prova deste esforço: “A BRS 404 tem mostrado um desempenho superior em condições de déficit hídrico, com rendimentos até 12% superior quando comparada às demais cultivares utilizadas na região”, conta Joaquim.
Outro destaque da pesquisa é a cultivar de trigo irrigado BRS 264, lançada ainda em 2005, que possibilitou a colheita sete dias antes do que as demais cultivares disponíveis no mercado na época, permitindo economizar água. “Trabalhamos hoje, além do melhoramento genético, com novas tecnologias em marcadores moleculares e transgenia. Acredito que logo o trigo tropical vai passar por uma revolução através das cultivares que estão em processo final de seleção”, conclui o pesquisador.
Com informações da Embrapa Trigo
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