“Revolução silenciosa na cadeia do leite está acontecendo”, será?!

Em entrevista ao CenárioAgro, o economista Paulo do Carmo Martins, chefe-geral da Embrapa Gado Leite, fala sobre as transformações da cadeia do leite.

Por que como maior exportador de carne bovina, o Brasil ainda tem de importar leite? Quais foram as consequências da greve dos caminhoneiros para o setor lácteo? Como se comportou durante 2018? Para responder essas e outras questões, o CenárioAgro conversou com o economista Paulo do Carmo Martins, chefe-geral da Embrapa Gado Leite.

CenárioAgro (CA) – Como foi que o setor da pecuária leiteira passou por 2018?

Paulo do Carmo Martins (PCM) – 2018 foi um ano desafiador para todos os setores da economia brasileira. Foi um ano com muita instabilidade política e, por consequência, econômica. No primeiro semestre, nós tivemos a greve dos caminhoneiros, que não foi prevista nem pelo Governo e nem pelos líderes dos principais setores, e que tomou uma repercussão muito intensa na atividade leiteira, considerando que tem duas características, ambas relacionadas à logística. Ela trabalha com uma logística de captação, com um produto altamente perecível e depois de processado, boa parte é refrigerado. As empresas lacticinistas, principalmente aquelas de maior porte, tiveram um prejuízo considerável. As de menor porte, conseguiram resolver problemas, por captarem próximo ao produtor, e também por atuarem em mercado regional, conseguiram estocar e resolveram o problema. Agora, as grandes tiveram uma dificuldade tremenda de abastecimento das fábricas e isso gerou perdas consideráveis.

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Paulo do Carmo Martins / Foto: Divulgação

Por parte do produtor, alguns laticínios dividiram o prejuízo com eles, e outros não. O fato é que isso afetou consideravelmente o setor. Os preços estavam em ascensão e ali houve um impacto, num primeiro momento, negativo. Os preços voltaram a subir substancialmente, então logo depois, até de uma maneira irreal. Nós tivemos em algumas bacias, o leite subindo a R$ 0,20 o litro. E o final do ano agora, tem sido um momento de menor margem para o produtor porque os preços estão caindo vertiginosamente; tanto para o produtor, como também no atacado e no varejo.

No primeiro semestre, o leite foi o vilão da inflação e no segundo semestre, ele está puxando a inflação para baixo. E deverá continuar assim até o início do próximo ano. Por que isso está acontecendo? Houve uma retração muito forte no consumo e um aumento na oferta, em função da disponibilidade de pastagem. Isso vai impactar a receita das propriedades até o final do primeiro trimestre do ano que vem.

CA – Por que o Brasil ainda não alavancou neste setor, sendo um dos maiores exportadores de carne do mundo?

PCM – Porque os economistas do governo nos anos 80 impediram o leite de se organizar. Quando nesta época, a gente começou a ter a organização das primeiras cadeias agropecuárias, de maneira bem sólida, o governo veio e tabelou o preço do leite porque queria controlar a inflação. O preço do leite é muito alto, ainda hoje, no cálculo da inflação. E como foi uma década de inflação elevada, o tabelamento no Brasil foi usado para desestimular a inflação. Portanto, no resto do mundo, e a gente copiou isso, o tabelamento é feito para proteger renda do produtor. Aqui foi feito para proteger rendo do consumidor. Então, você expulsou do setor pessoas com visão empresarial, que tinham capacidade de investir em tecnologia. Foi feita uma seleção adversa ao setor. Mas, nos anos 90, quando o governo parou o tabelamento, o leite fez algo substancialmente interessante – sem proteção, com a economia aberta, com o câmbio forte, o leite fez uma substituição de importação. E a gente vem crescendo dos anos 90 para cá, brutalmente em termos de produtividade. E mesmo quando a gente olha para esses 40 e poucos anos, vc vê que a gente produzia 7 bilhões e hoje produzimos 34 bilhões de litros, ou seja, a gente mais do que quadruplicou.

Agora, nós temos no Brasil o que é de mais valorizado – nós temos mercado. Nós somos uma população jovem, com um consumo de 170 litros; nós vamos crescer, por habitante até 270 litros, que é o padrão de primeiro mundo. Então, nós temos 100 litros por habitante para crescer e é por isso, que as principais empresas do mundo estão por aqui. É por isso que a Coca Cola está entrando no mercado de leite por aqui; é por isso que a Nestlé está aprendendo a trabalhar com produtores orgânicos aqui; quer dizer, o Brasil virou laboratório de leite.

Está acontecendo uma revolução silenciosa e eu não tenho a menor dúvida de que seremos exportadores.

CA – E em quanto tempo você acredita que nosso leite será exportado?

PCM – O BNDES solicitou à Embrapa que fizesse um estudo sobre a viabilidade de exportação de lácteos e, nós concluímos que já temos produtividade elevada no Brasil compatível com o primeiro mundo. O que não dá é pra gente imaginar que o Brasil inteiro vai exportar. Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, algumas regiões de Minas Gerais, São Paulo e Goiás já têm produtividade compatível com o padrão de exportação, tanto por vaca, por hectare, custo de produção mais baixo, qualidade do produto, e nós precisamos entrar no mercado mesmo porque o objetivo precisa ser estabilizar preço no mercado interno.

CA – Se já temos as condições necessárias nestas regiões, o que ainda nos impede?

PCM – O impeditivo hoje, para exportação, é a baixa produtividade. O que nos falta é audácia. Nós já fomos exportadores, entre 2004 e 2008 porque o mundo queria comprar. Nós chegamos a exportar para 83 países, de uma vez só. Mas o mundo queria comprar naquele momento. Hoje, não é bem assim porque os mercados… a economia está deixando de ser global. Agora, por que nós precisamos exportar? Porque todo produto de mercado externo tem estabilidade de preços; todo produto de mercado interno, só de mercado interno tem instabilidade de preço. Motivo? Produto que é de mercado interno, se tem muita oferta e demanda, afeta o preço. Produto de mercado externo, o que vale é o preço internacional. Então, se você tem muita oferta, você vende; se você tem muita demanda, você compra. Então, é isso que nós precisamos fazer. Nós precisamos ser um país que esteja vinculado ao mercado internacional porque isso vai pressionar o aumento da produtividade e a redução do custo de produção e também melhoria da qualidade dos produtos também.

CA – E como estamos em relação à industrialização deste setor?

PCM – Falta no Brasil grandes plantas industriais para que a produtividade seja maior e o custo unitário, menor.

Na Nova Zelândia, por exemplo, que é um país pequeno, eles processam 9 milhões de litros de leite por dia. Por que isso não acontece no aqui? Por causa da guerra fiscal entre os estados. Isso inviabiliza… do jeito que hoje ocorre, as empresas são obrigadas a ter fábricas pequenas em cada estado porque existem barreiras tarifárias entre um estado e outro. Então, isso complica tremendamente. A guerra de ICMS é algo que faz o leite ser caro e a rentabilidade ser baixa na cadeia leiteira. Então, é evidentemente um problema de política fiscal. É o Estado atrapalhando até nisso.
O Estado não atrapalha só quando tributa; ele atrapalha quando tem uma política mal definida. E no caso aí, é uma guerra entre os estados.

CA – Quais são hoje as maiores dificuldades dos produtores?

PCM – Nós temos de separar os produtores; eles não são os mesmos. Nós temos um tipo de produtor, que é altamente tecnificado, que hoje tem duas dificuldades – de acesso às linhas de crédito para automatizar a produção, tem dificuldade de estradas, dificuldade de internet, e boa parte dele está indo para o “Compost Barn” (forma de produção em que os animais ficam soltos); mas a pesquisa está muito atrasada. Então, o produtor está errando muito no Compost Barn porque não tem pesquisa sendo feita. Chegou aqui em 2014 e foi exatamente na época que o Estado parou de alocar recursos na pesquisa. Hoje no Brasil, devemos estar com uns 2 mil compostos – 75% tá funcionando mal, mas ainda assim está melhor porque aqui, o produtor reduziu o custo e a produtividade das vacas aumentou.

O produtor que não é tecnificado precisa disso tudo e também de assistência técnica. Aqui no Brasil, a história é muito engraçada porque nós primeiro criamos a assistência técnica, aí depois vimos que precisava de pesquisa. Aí quando a gente criou a pesquisa, a gente acabou com a assistência técnica. Então, as duas coisas não andam juntas. E aí, quem faz a assistência técnica é o setor privado. Nem as cooperativas dão muita bola pra isso.

Bom, e tem o produtor desvalido, que tem uma carência de sobrevivência até porque ele compra o insumo mais caro e vende mais barato o leite. Então, a margem dele é menor. Boa parte desses produtores estão tendo dificuldade de sobrevivência.

CA – Expectativas com o novo governo. Que cenário vislumbra para 2019?

PCM – Temos expectativas positivas em relação ao governo. Primeiro porque foi designada uma ministra que entende e é sensível ao setor. Isso faz uma diferença muito grande. Sempre sinalizou que toma decisões; o setor lácteo está muito satisfeito, e acreditando que grandes mudanças vão ocorrer.

Segundo, que a gente espera que seja retomado o processo de investimento em infraestrutura. A gente tá com expectativa de que haja recursos pra melhoria das estradas e de internet. São duas coisas de que o setor precisa. E o terceiro, que a gente continue investindo em tecnologia porque não dá pra pensar em futuro se a gente não priorizar investimento em pesquisa e desenvolvimento.

Tá ocorrendo uma revolução silenciosa no leite, inegavelmente. Para quem trabalha no longo prazo, sabe que o leite é altamente rentável.

Via CA

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