Com liberação das plantas cannabis em vários estados dos EUA, produtores estão de olho no cânhamo, variedade com aplicação na construção e que pode movimentar US$ 573 milhões
Os romanos já usavam desde os tempos de Júlio César, mas não para ficar “chapados”. A planta era cultivada até por George Washington e Thomas Jefferson, históricos presidentes dos Estados Unidos entre os séculos 18 e 19. Agora que vários estados norte-americanos legalizaram o uso de maconha com propósitos recreativos e médicos, um dos maiores mercados inexplorados da própria planta de cannabis – pelo menos uma variedade dela, o cânhamo – poderia ser o da construção.
O material de construção mais sustentável não é o concreto ou o aço, mas sim um cânhamo de rápido crescimento. A planta já era utilizada em estruturas desde a época do Império Romano. Uma ponte de argamassa à base de cânhamo foi construída no século VI, quando a França ainda era a Gália.
Atualmente, vários construtores e botânicos estão trabalhando para renovar esse mercado. A mistura das fibras resistentes do cânhamo com cal produz um concreto natural e leve que retém calor e é altamente isolante. Sem pragas, sem fungos, com boa acústica, baixa umidade e sem pesticidas. E a planta cresce o suficiente para ser colhida em cerca de quatro meses.
Sendo uma variação da popular Cannabis sativa, esse cânhamo esguio é muito parecido com a maconha na sua capacidade de se desenvolver em uma grande variedade de climas, crescendo até 4,5 metros e quase 2,5 centímetros de diâmetro. A camada interna do caule da planta cerca um núcleo lenhoso chamado floema. Ele é a fonte da fibra resistente que pode ser usada em cordas, tecido e papel.
O cânhamo é geralmente plantado entre março e maio no Hemisfério Norte, ou entre setembro e novembro no Sul. Uma vez cortadas, geralmente à mão, as plantas são postas para secar por alguns dias antes de serem embaladas e colocadas em recipientes com água, o que incha os talos. As fibras são então misturadas para uma variedade de usos, como a adição de cal. Isso cria tijolos conhecidos como hempcrete (concreto de cânhamo).
O cânhamo industrial contém apenas 0,3% de THC (tetraidrocanabinol), a substância entorpecente da maconha. A cannabis consumida como droga contém até 20%.
As duas variedades também são visualmente diferentes. O gênero sativa produz uma planta mais alta; já a do gênero indica, mais baixa, possui tricomas de resina responsáveis pelo poder psicoativo. A regra é: quanto melhor a flor em broto, mais pobre é o cânhamo.
Potencial
Além disso, ao contrário da maconha, não é possível cultivar cânhamo em instalações hidropônicas caseiras: como suas raízes profundas precisam se espalhar, o cultivo ao ar livre é necessário. As sementes e as folhas da planta podem ser consumidas cruas, em pó ou em óleos.
Obter uma planta madura em apenas alguns meses – com menos adubo do que o necessário para culturas industriais, como o milho, e sem fertilizantes químicos ou inseticidas – aumenta muito o potencial de lucro. À medida que o cânhamo acumula água da terra, suas raízes longas fazem circular o ar, o que melhora a qualidade do solo – outra vantagem para os agricultores que fazem rodízio de culturas.
Combater a poderosa reputação de droga ilícita da planta pode ser o obstáculo mais difícil para agricultores e construtores, e possivelmente um obstáculo ainda maior durante o governo Trump. A regulamentação ainda é grande.
Em janeiro, entretanto, a Califórnia legalizou o uso integral da planta. E a legislação agrícola federal de 2014 legalizou o cultivo de cânhamo para fins de pesquisa em universidades nos estados onde a planta é liberada. E agora, Nova York está investindo até US$ 10 milhões em uma iniciativa de pesquisa de apoio a empresas de cânhamo, com participação no programa piloto de instituições, incluindo a Universidade de Cornell.
Ainda assim, nos Estados Unidos são necessárias permissões especiais para construir com cânhamo, e os requisitos podem variar de acordo com o município e o estado. A primeira casa moderna de cânhamo foi construída em 2010, na Carolina do Norte. Atualmente existem cerca de 50 construções do tipo no país.
Mas ainda não se planta muito cânhamo nos EUA; pouco menos de 4 mil hectares até agora, o suficiente para cerca de 5 mil casas. A área cultivada no Canadá é o dobro e, na província chinesa de Yunnan, 10 mil fazendeiros cultivam a planta. Hoje, cerca de 30 países produzem cânhamo, incluindo Espanha, Áustria, Rússia e Austrália.
Redescoberta
O cânhamo foi redescoberto nos anos 1980 em toda a Europa, onde o cultivo é legal, e a França se tornou o maior produtor da União Europeia. Centenas de edifícios em todo o continente usam a planta como isolamento para preencher paredes e telhados, e no contrapiso de edifícios com estrutura de madeira.
Os fabricantes dizem que é ideal para construções baixas, sendo um produto semelhante ao estuque e não tóxico. Seus defensores também afirmam que sua pegada de carbono é menor, exigindo três vezes menos calor para ser feito do que o concreto de calcário padrão.
Mais parecido com gesso do que com concreto, o hempcrete não pode ser usado em fundações ou estruturas; é um isolamento que precisa respirar, diz Joy Beckerman, especialista em leis relativas ao cânhamo e vice-presidente da Hemp Industries Association, um grupo comercial norte-americano.
O cânhamo não deve ser usado no nível do solo, pois perde sua resistência à umidade e ao mofo. Revestimentos de gesso ou placas de óxido de magnésio devem ser aplicados a qualquer coisa que contenha hempcrete, ou a cal vai calcificá-lo e ele irá perder a capacidade de absorver e liberar água.
Embora pareça muito trabalho, Beckerman chama atenção para o retorno em longo prazo.
“Em muitos climas, uma parede de cânhamo de 3,6 metros vai manter a temperatura interior em aproximadamente 15ºC durante o ano todo, sem ar-condicionado ou sistemas de aquecimento. A pegada ambiental é drasticamente menor que a construção tradicional”, afirma ela.
Legislação
Ainda não existem padrões internacionais para o uso do cânhamo na construção, ou regulamentação sobre como ele deve ser usado estruturalmente ou de forma segura. A ASTM International, uma organização de padrões técnicos, formou em 2017 um comitê para discutir esse assunto.
No entanto, o uso de cânhamo está se espalhando. Uma empresa do estado de Washington o utiliza para reformas de casas. A Left Hand Hemp, em Denver, completou a primeira estrutura que teve permissão de uso do material no Colorado no ano passado. Há a Hempire na Ucrânia e a Inno-Ventures no Nepal. A primeira casa de cânhamo de Israel foi construída em março nas encostas do Monte Carmel.
Na Nova Zelândia, 500 fardos de cânhamo holandeses foram transformados em uma propriedade que foi vendida por cerca de US$ 650 mil. Na Grã-Bretanha, a HAB Housing construiu cinco casas com hempcrete no ano passado. No Canadá, a JustBioFiber ergueu recentemente uma casa na Ilha de Vancouver com blocos de cânhamo embutidos, inspirada em peças de Lego.
É um setor de nicho do mercado de cannabis, mas que está crescendo. Em 2015, a Hemp Industries Association estimou um mercado de varejo de US$ 573 milhões nos Estados Unidos.
“Quando fundei a Hempitecture em 2013 e apresentei o conceito, os capitalistas de risco riram da ideia”, disse Matthew Mead, fundador da empresa de construção em Washington. “Agora, existem mais de 25 estados com emendas e legislação pró-cânhamo, e a lei agrícola federal prevê apoio ao desenvolvimento de pesquisas do cânhamo industrial.”
Assim como os “pot-repreneurs” (empresários da maconha) que criaram dispensários da erva há uma década, antes que as leis fossem definitivas, uma nova geração está avançando apesar das incertezas.
Sergiy Kovalenkov, 33 anos, engenheiro civil ucraniano que passou os últimos três anos construindo estruturas de cânhamo e dando consultorias em projetos na Ucrânia, França, Suécia e Jamaica, está começando um projeto na Califórnia. Os piores entraves, diz Kovalenkov, são a burocracia, as licenças e as sementes.
“As regras de construção variam de estado para estado, com regulamentos em termos de incêndio e atividades sísmicas. Se estamos falando de produtos sustentáveis, as sementes não podem vir da Polônia ou da França, mas sim da Califórnia.”
Apenas um local nos Estados Unidos processa o cânhamo para matéria prima: a Carolina do Norte. A Hempire EUA, empresa de Kovalenkov, também desenvolveu seu próprio sistema de separação de fibras. “A demanda será enorme nos próximos três a cinco anos”, reconhece.
Mas, qual o cheiro de uma casa de cânhamo?
“Cheira a conforto”, crava Kovalenkov, rindo. “Tem um pouco de cheiro de cal. Estamos usando a planta processada, que não têm cheiro – não tem nada a ver com maconha. É uma cultura industrial.”
Fonte: Gazeta do Povo