Porcos podem ser o futuro dos transplantes de órgãos

Após uma série de avanços da medicina, o interesse no campo dos xenotransplantes se renovaram. Será que os porcos irão resolverão a escassez global de órgãos?

É o maior avanço já realizado na área de transplantes médicos. Os primeiros órgãos retirados de porcos geneticamente modificados foram transplantados em seres humanos e a pessoa que recebeu o primeiro coração de porco conseguiu sobreviver por dois meses. Qual a distância que nos separa do uso de porcos para fornecimento ilimitado de órgãos e assim resolver sua escassez global?

O silêncio cai sobre a sala de cirurgia e a tensão se acumula ao ponto de parecer ter presença física na sala. Cirurgiões acabaram de conectar um rim de porco a um corpo humano. Os fixadores foram removidos e o sangue humano agora flui através do órgão suíno. “Dava para ouvir um alfinete cair”, conta a cirurgiã Jayme Locke, especialista em transplantes.

O sucesso ou o fracasso será determinado em alguns instantes e agora uma única questão ocupa a mente de todos: “rosa ou preto?” Se o corpo desencadear um intenso ataque ao órgão externo, serão rasgados buracos em todas as células do tecido suíno e o órgão se coagulará de dentro para fora. Ele ficará manchado, depois azul e completamente preto em questão de minutos. Mas, se não ocorrer a chamada “rejeição hiperaguda”, o órgão ficará rosado com o fluxo de sangue e oxigênio.

“Ele ficou belo e cor-de-rosa… a sala se encheu de uma sensação de alívio, alegria e esperança. Talvez nós também tenhamos comemorado”, afirma a Dra. Locke, da Universidade do Alabama em Birmingham, nos Estados Unidos. Essa operação foi apenas uma de uma série de avanços da medicina que renovaram o interesse no campo dos xenotransplantes.

O uso de órgãos de animais no corpo humano é uma ideia antiga e incluiu desde implantes de testículos de chimpanzés até a substituição de rins e corações retirados dos nossos parentes primatas – mas estes costumavam terminar em morte do paciente pouco depois. O problema é que o nosso sistema imunológico trata o órgão transplantado como uma infecção e o ataca.

Equipe cirúrgica da Universidade do Alabama em Birmingham, nos Estados Unidos.

Atualmente, a medicina está concentrada nos porcos, pois seus órgãos são mais ou menos do tamanho certo e nós temos séculos de experiência criando suínos. Mas o desafio da rejeição hiperaguda – manter os órgãos cor-de-rosa e não pretos – permanece. Você não pode simplesmente aparecer na fazenda, escolher um porco, abatê-lo e transplantar seus órgãos. Foram necessários enormes avanços da engenharia genética para alterar o DNA dos porcos e tornar seus órgãos mais compatíveis com os nossos sistemas imunológicos.

Os recentes transplantes de rim e coração utilizaram órgãos dos “porcos de 10 genes”, especialmente projetados para essa função. Eles possuem um ajuste genético para evitar que seus órgãos doados reajam aos hormônios do crescimento humano e cresçam fora de controle.

Outra alteração importante remove uma molécula de açúcar, chamada alfa-Gal, que se adere à superfície das células dos porcos e age como se fosse um luminoso de neon gigante que marca o tecido como sendo totalmente externo. Um braço do nosso sistema imunológico, chamado de sistema complementar, patrulha constantemente o corpo em busca de alfa-Gal. É por isso que os órgãos podem ser rejeitados e mortos momentos após o transplante.

Dois outros “sinais de neon” foram removidos geneticamente e seis sinais humanos foram acrescentados, agindo como uma rede de camuflagem sobre as células dos porcos para ajudar a escondê-las do nosso sistema imunológico. Os porcos de 10 genes resultantes são então criados em condições estéreis para que sejam adequados para o transplante.

O rim e o coração

Um par de rins suínos foi transplantado para o corpo de Jim Parsons após sua morte cerebral, em 2021. Parsons queria ser doador de órgãos e, quando ele morreu, rins de porcos foram colocados no lugar dos seus rins doados, com a permissão da família.

A Dra. Locke descreve como “notável” o momento em que um dos rins começou a produzir urina. Ela acredita que os xenotransplantes podem “realmente mudar a vida das pessoas e, honestamente, salvar as suas vidas”. Ela espera começar testes clínicos ainda este ano.

Família de Jim Parsons deu permissão para transplante de rins suínos para seu corpo após morte.

Essa operação foi um experimento que durou três dias. Enquanto isso, os cirurgiões do Centro Médico da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, estavam prestes a avançar um pouco mais.

Seu paciente David Bennett, com 57 anos de idade, havia sofrido uma forte parada cardíaca. Ele não era considerado apto a receber um transplante de coração humano e era mantido vivo por uma máquina de oxigenação por membrana extracorporal (Ecmo, na sigla em inglês), que sustentava seu coração e seus pulmões. Bennett descreveu o implante de um coração de porco como um “tiro no escuro”.

Um ‘porco de 10 genes’ foi levado ao hospital e, no dia 7 de janeiro, seu coração foi colocado no peito de David Bennett. A operação foi trabalhosa porque o coração doente de Bennett havia inchado, de forma que foi um desafio ligar os vasos sanguíneos ao coração menor do porco.

Novamente sobreveio aquele momento nervoso para ver se o coração seria rapidamente rejeitado, mas ele estava batendo e permaneceu cor-de-rosa. Muhammad Mohiuddin, diretor do hospital de xenotransplante cardíaco, afirmou que não esperava testemunhar isso “no meu tempo de vida”.

Quando falei com ele um mês após a operação, Bennett disse que não havia sinais de rejeição do órgão, mas ele ainda estava debilitado. “Nós colocamos o motor de uma Ferrari nova em um carro dos anos 1960. O motor está trabalhando muito bem, mas o resto do corpo precisa se ajustar”, disse o Dr. Mohiuddin.

Primeiro transplante de coração de porco em um ser humano foi realizado em Baltimore, nos Estados Unidos.

Mas David Bennett morreu dois meses após o transplante. A causa e as consequentes implicações para os xenotransplantes ainda não estão claras. Bennett estava muito fraco antes da operação e é possível que até o coração novo não fosse suficiente. Não foi relatado nenhum sinal de rejeição do órgão, mas, se a análise detalhada do coração demonstrar sinais de ataque do sistema imunológico, o porco de 10 genes poderá precisar de outras modificações para tornar seus órgãos apropriados para o corpo humano.

Poderá também ser questão de anatomia – os corações de porcos podem não ser adequados para funcionar em seres humanos. Os nossos corações precisam trabalhar muito mais contra a gravidade que os dos porcos, já que nós andamos com duas pernas e não com quatro.

Chris Denning, professor de biologia de células-tronco da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, afirma que superar a rejeição hiperaguda significou que o transplante de coração pode ser considerado “um sucesso”. Para ele, se a questão era a fragilidade do paciente, os xenotransplantes “poderão ser bem sucedidos no futuro”, mas, se o problema foi a anatomia, a questão poderia “ser potencialmente impeditiva”. O hospital tem planos de continuar com seus testes clínicos.

Os corações de porcos não precisam ser tão bons quanto os humanos para, ainda assim, salvar uma enorme quantidade de vidas, segundo John Wallwork, um dos principais cirurgiões de transplantes do Reino Unido. Muitas pessoas morrem simplesmente esperando pelo transplante.

O Prof. Wallwork, que realizou o primeiro transplante de coração, pulmão e fígado do mundo e foi um dos pioneiros dos xenotransplantes, afirma que é melhor dar a mil pessoas uma probabilidade de 70% de sobrevivência com um coração suíno que dar a 100 pessoas uma possibilidade de 85% com um coração humano.

“Mesmo se não fosse tão bom quanto um transplante humano, ainda teríamos trazido mais benefícios do que sem o transplante nos mil pacientes”, afirma ele. O xenotransplante sempre pareceu o próximo grande avanço da medicina de transplantes. Sem dúvida, já foram realizadas diversas operações históricas, mas apenas mais pesquisas nos dirão se esse campo e seus grandiosos sonhos algum dia se tornarão realidade.

“Nosso objetivo seria ter um porco modificado com 10 genes capaz de salvar um paciente com falência renal, um paciente com falência do fígado, um paciente com parada cardíaca e um paciente com doença pulmonar em estágio terminal”, acrescenta a Dra. Locke. “Esta seria uma realização notável e eu realmente acredito que vou viver para ver isso acontecer.”

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Fonte: BBC News

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