Política Agrícola e o buraco negro

A divulgação dos dois planos safra 2024/2025 manteve forte minha impressão solitária de que a política agrícola no Brasil está ao “Deus dará”: muito discurso, muita pompa, pouca consistência, falta de coordenação e de visão estratégica. Isso independentemente do partido ou ideologia dominante.

Lançados os dois planos safra 2024/2025, fiz o mesmo que o governo e o legislativo fizeram em seguida: tirei uns dias para descanso. 

Digo isso porque, por exemplo, o projeto de lei assinado no lançamento do plano da agricultura familiar, que autorizará o Fundo Garantidor de Operações a assistir unidades produtivas da agricultura familiar e suas cooperativas, ainda está parado na mesa da Câmara dos Deputados. Claro que será aprovado rapidamente, provavelmente ainda em agosto, mas depois ficará no aguardo de regulamentação por meio de portaria interministerial Fazenda/MDA.

Mercado de máquinas e implementos agrícolas usadas está em ascensão

Durante os meus dias de descanso, li com calma os discursos dos eventos, as resoluções do CMN e o material de divulgação de cada ministério (o portal de um deles tem um erro terrível na identificação dos públicos-alvo dos recursos).

Quanto ao contexto geral dos planos, recomendo a leitura dos meus artigos de 24 e 27 de junho onde quase tudo que foi previsto por este “dublê de Nostradamus” foi confirmado:

  • com base nos desembolsos do crédito rural, ambos os novos planos serão “um sucesso”, embora “ordinários” (mais do mesmo), e com base na mitigação de riscos climáticos, ambos serão “um fracasso”, pela falta de inovação institucional.
  • para serem efetivos, ambos precisariam estar vinculados a uma matriz de riscos e a um plano plurianual, com instrumentos adequados e orçamentos com autonomia financeira.

É possível ver no plano safra da agricultura familiar uma boa base técnica, porém preocupa a qualidade das decisões políticas na sua execução, muito influenciada por preconceitos ideológicos e interesses eleitoreiros.

Consistentes as anunciadas parcerias entre o MDA e o SEBRAE nacional, o BNDES, a Fundação Banco do Brasil. Senti falta de acordos similares com o SENAR, o SESCOOP e a Embrapa. E falta de um direcionamento estratégico para a ANATER.

Foram mantidos os parâmetros de enquadramento como pequeno (o mesmo desde agosto de 2021), médio (o mesmo desde agosto de 2023) e grande/“demais” produtor (o mesmo desde agosto de 2023). Isso acarretará alguma migração de produtores do Pronaf para o Pronamp (daí porque aquele segundo programa teve um certo “up grade”). 

Continuando o governo a ter os posicionamentos atuais, seria de se pensar em migrar a gestão do Pronamp para o MDA, por coerência. Isso porque parece que houve a implementação, na prática, até por conta das dificuldades fiscais do País, de uma política de renda, seguro e crédito específica para os pequenos e médios produtores, ancorada no crédito rural tradicional (R$ 76 bi no Pronaf e R$ 65 bilhões no Pronamp), e de uma não declarada “zero política agrícola” para os produtores de maior porte. 

Percebe-se também dois modelos de Pronaf/Pronamp: I) para a região Centro-sul, conduzido pelo BB e pelos bancos cooperativos, no futuro (?) contando com o FGO para minimizar os efeitos das últimas adversidades climáticas; II) um para as regiões Norte e Nordeste, ancorado nos respectivos fundos constitucionais (tomara que neste público o BB seja mais “Fundação” e menos “banco”).

Para os pequenos e médios produtores, seria essencial a nacionalização (daí a necessidade de contar com o SENAR, o SESCOOP e a Embrapa) de projeto similar ao “ Projeto Integrar”, que visitará 410 mil propriedades rurais em São Paulo, para mapear as culturas e a força de trabalho e identificar as vocações regionais e incentivar o desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais (APLs).

Por incrível que possa parecer, o Proagro tem sido, no acumulado dos últimos anos, mais eficiente como instrumento de política agrícola do que o subsídio ao prêmio do seguro rural. Daí porque é a alternativa de proteção contra riscos climáticos indicada pelo governo para o Pronaf e o Pronamp.

Salvo engano meu, foi mitigada a alucinação de alguns técnicos que queriam “tirar o cobertor” de alguns públicos tradicionais (sem dar alternativa) do Proagro/Pronaf. Isso para “os empreendimentos de arroz, feijão verão, olericultura e aqueles referentes a culturas permanentes” no ciclo 2024/2025.

No âmbito do Ministério da Agricultura, o mote é o do “fortalecimento dos sistemas de produção ambientalmente sustentáveis”, mas com:

  • uma tímida utilização da plataforma AgroBrasil + Sustentável como meio de caracterização de “sustentabilidade”.
  • um mecanismo de incentivo à “sustentabilidade” inadequado (redução na taxa de juros do custeio).

Na área de atuação do ministério da Fazenda, uma boa gestão dos recursos escassos, mas faltou ousadia: 

  • a migração do subsídio ao crédito rural das Cédulas de Crédito Rural/CCBs para a aquisição de Cédula de Produto Rural pelos bancos (com “trava” dos “spreads”) seria fácil de implementar, reduziria fortemente o custo operacional dos financiamentos (aumentando o volume total de recursos controlados) e incentivaria alguns bancos privados a atuarem com o setor produtivo rural. 
  • a poupança rural parece estar destinada a ser a principal fonte de recursos dos pequenos e médios produtores, em especial após a implantação do DREX, pelo que o governo deveria ser mais firme no incentivo à captação de recursos naquela fonte.

O persistente leitor que conseguiu chegar até aqui deve estar a se perguntar sobre o “buraco negro” citado no título deste artigo.

Segundo a Wikipedia (este artigo não é científico), um buraco negro é “uma região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada – nenhuma partícula ou radiação eletromagnética como a luz – pode escapar”.

Ante a inércia do governo e o silêncio das seguradoras, dos traders, dos produtores a respeito, especulo que o seguro rural (e o subsídio ao prêmio deste) caiu em um “buraco negro”.

Posso estar enganado, mas talvez:

  • as seguradoras e resseguradoras tenham sinalizado uma forte indisposição de contratação de novas apólices no período 2024/2025. 
  • os produtores rurais consigam pagar o seguro sem subsídio, como aventou a presidente do BB em entrevista recente.
  • boa parte dos produtores gaúchos possa ser atendida pelo Proagro, cujas despesas naquele Estado seriam “batizadas” como sob a égide do Decreto Legislativo nº 36/2024 (ou seja: “essa despesa pública pode”).
  • uma eventual economia dos recursos públicos decorrente da classificação das operações no RS como “essa despesa pública pode” permitiria bancar o seguro rural e/ou o Proagro para os demais produtores de pequeno e médio porte dos estados da região centro-sul. 

Com a força política que tem, a Frente Parlamentar da Agricultura poderia facilmente aprovar novos recursos para o seguro rural e provavelmente esperava que o governo pedisse isso. Mas o governo não pediu (ou se pediu achou a conta alta), ante os impactos que a credibilidade da política fiscal teria no mercado financeiro (e no câmbio). Ante o impasse para a implementação (formal) da desoneração da folha de pagamento de municípios e setores produtivos e para a aprovação da renegociação das dívidas dos estados, proposta no Senado, talvez não haja muito espaço para a continuidade da prática do “essa despesa pública pode, essa aqui não pode”.

Aguardemos o desenrolar da novela.

Fonte: Agro Estadão

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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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