Para os envolvidos na cadeia da pecuária bovina, frequentemente surgem conversas com informações aterrorizantes para o setor.
por Sergio Raposo de Medeiros*
Algumas delas são que há um vertiginoso aumento no número de vegetarianos e veganos, que já há carne produzida em laboratório de maneira muito barata, que “nerds” do Vale do Silício estão trabalhando em alternativas que façam a humanidade parar de produzir carne, que o futuro da humanidade é comer insetos e por aí vai.
O objetivo deste texto é trazer algumas informações sobre cada um desses assuntos e tentar dar uma ideia mais realista da ameaça que cada um deles pode, de fato, representar para nosso setor. No final, algumas considerações de como lidar com esse novo cenário sem precisar fazer uso de ansiolíticos, mas se reorientando em uma direção que nos leve a uma nova pecuária que, sem abrir mão da sua vocação de alimentar o mundo, produza mais em sintonia com quem manda nele, o consumidor.
ONDA VEGANA
Há uma tendência crescente do consumidor em se importar mais sobre a origem do alimento, o bem-estar animal ligado à como ele é produzido e seu respectivo impacto ambiental. Essas questões são confrontadas com seus valores pessoais e influenciam na decisão de consumo.
Em função da narrativa corrente e dominante, a crença é que, substituindo a carne por vegetais, a pessoa estaria ajudando a reduzir problemas ambientais e tendo uma vida mais saudável. Além disso, especialmente entre os mais jovens, haveria um desconforto por envolver o abate do animal e pela percepção de que os animais passariam por sofrimento durante o processo de produção.
Há algum tempo tem sido detectado aumento de vegetarianismo (pessoas que não comem carne, mas podem ou não consumir ovos e leite) e sua vertente mais radical, o veganismo. O vegano bane todos os alimentos de origem animal (mel, leite, ovo, carne, etc.) do seu cardápio, bem como qualquer produto de origem animal, como é o caso da seda.
Ao se ler as notícias correntes, fica a forte impressão de que existiria essa “onda vegana” mas, na verdade, ela é fruto do agressivo ativismo de grupos anti-carne, sem encontrar suporte na realidade. As notícias que esses grupos repercutem muitas vezes são distorcidas e há muitos dados obtidos a esmo, os quais resultam em conclusões não verificadas na prática.
Recentemente, por exemplo, um levantamento afirmou que o mundo teria passado de 1% de veganos, em 2014, para 6% em 2018. Curiosamente, foi um ativista vegano mesmo quem contestou esses dados e compilou resultados recentes, entre 2013 e 2016, com quantidade estimada de veganos em vários países (tabela 1):
Tabela 1 – Porcentagem de veganos em alguns países em proporção da população total
Observando os dados da tabela 1, fica claro que aqueles 6% são totalmente improváveis. No Brasil, não há dados oficiais para o número de veganos, mas, em 2012, o IBOPE apurou a porcentagem de brasileiros que se declarava vegetariano como 8% da população. Neste último domingo, 20/05/2018, sai uma reportagem com o título “14% dos brasileiros se declaram vegetarianos, mostra pesquisa Ibope”, no jornal “O Estado de São Paulo”. Nela foi divulgada uma nova pesquisa IBOPE em que 8% concordariam totalmente com a afirmação “sou vegetariano” e, 6%, parcialmente. Em função de, aparentemente, o IBOPE não ter feito a mesma pergunta nas duas ocasiões, fica difícil comparar os resultados. O que parece ser o caso é que teríamos, conforme a definição usada neste texto, 8% de brasileiros vegetarianos e veganos e 6% de uma relevante nova categoria “flex” que detalharemos mais a seguir.
O fato é que a “onda vegana” está mais para uma “marola vegana”. Um dos motivos para isso é que não é fácil manter essa dieta ou a dieta vegetariana. Reportagem da revista Time, de 2002, trouxe dados segundo os quais 60% dos que se declaravam vegetarianos admitiam ter comido pelo menos um produto de origem animal nas últimas 24 horas. Evoluímos como espécie comendo carne e, hoje, sabemos como ela foi fundamental para nosso desenvolvimento. Vale muito a pena ver a mini vídeo aula (10 minutos) do Prof. Walter Neves, paleontólogo da USP), no qual ele explica como a carne e o fogo permitiram o aumento do cérebro na evolução até o Homo sapiens.
Esse é um dos motivos pelo qual a carne é um alimento ao qual estamos tão ligados desde cedo. Por conta dessa estreita ligação dos humanos com a carne, há grande dificuldade em manter-se longe dela e, por isso, uma nova categoria de consumidor surgiu, o flextariano. Estes adotariam uma opção menos restritiva, apenas reduzindo o consumo de carne, sem bani-la do cardápio (que tem como precursor aquele seu amigo vegetariano que só comia carne no seu churrasco, o “flextariano de ocasião” que só come a carne comprada com dinheiro de terceiros!).
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Os flextarianos são os que têm maior potencial de causar redução na demanda da carne, exatamente por ser um estilo de vida mais fácil de se levar, passível de ser adotado por um número maior de pessoas. Em linha com isso, há pesquisas que mostram a intenção em várias partes do globo de redução individual de consumo de carne.
Há dois motivos para os pecuaristas não sofrerem por antecedência com essa pesquisa: (1) Entre a intenção declarada e a ação efetiva, pode haver grande diferença e, especialmente quando comida e prazer estão envolvidos, frequentemente fica-se só na intenção mesmo; (2) Há um enorme contingente de habitantes dos países emergentes que devem se tornar ávidos consumidores de carne e que, mesmo que consumam com muita parcimônia, representam um grande potencial de aumento de mercado para nossa carne.
CARNE DE LABORATÓRIO E HAMBÚRGUER BASEADO EM PLANTAS
A carne de laboratório, ou carne-in vitro é criada a partir de células musculares retiradas de um bovino vivo que, nutridas em meio de cultura, se multiplicam para criar tecido muscular. Um dos grupos mais avançados é da Universidade de Maastricht, na Holanda. Ainda assim, eles preveem um produto comercial apenas para daqui uma ou duas décadas! Para tal, eles ainda precisam achar um substituto para o meio de cultura (soro fetal bovino) e uma forma viável de produzir em grande escala.
Por fim, essa tecnologia ainda precisará dos animais como doadores de células e do soro, o que vai um pouco contra a motivação dos grupos de interesse nesta novidade. Há uma ideia de fazer kits para a pessoa produzir sua “carne-in vitro” em casa, mas seriam vários dias de cultivo até ter o suficiente para uma refeição, ou seja, é uma opção pouco atraente para gerações cada vez menos dispostas a esperar.
A alternativa à carne bovina que está em voga nos EUA são os hambúrgueres baseados em plantas (HBP). A ideia desta alternativa é desenvolver um simulacro de hambúrguer de carne com base em ingredientes vegetais e tecnologia de ponta. Há várias “startups” em busca desse HBP, mas duas são as grandes estrelas do mercado: A Impossible Foods (Comidas impossíveis) e a Beyond Meat (Além da Carne), ambas sediadas no Vale do Silício.
Algumas informações sobre elas:
Impossible Foods: Pat Brown, cientista fundador, ex-professor na faculdade de medicina de Stanford, deseja eliminar a necessidade de criar animais até 2035. Do laboratório ao produto, 300 milhões de dólares em capital de risco foram investidos. No melhor estilo “cientista-maluco”, ele considera a indústria de produção animal pré-histórica e a mais destrutiva do planeta e quer resolver o problema tecnologicamente. O grande feito do seu laboratório foi rearranjar moléculas de vegetais de forma a imitar a textura e o sabor da carne dos hambúrgueres de verdade. O processo usa leveduras transgênicas sobre a proteína de soja que resultam em leghemoglobina. É esse composto que dá a sensação do sabor da carne. Outros ingredientes principais são a proteína de trigo e a proteína de batata. A Impossible Foods inaugurou uma fábrica com capacidade para produzir quase 500 t/mês de hambúrgueres para suprir 200 restaurantes.
Beyond Meat: Eathan Brown, fundador, assim como o outro Mr. Brown (não são parentes!), acredita que faz um bem à humanidade ao dar alternativa à produção de carne bovina, vinculando as principais doenças com o consumo de carne. No seu caso, são rearranjadas moléculas da ervilha para dar a sensação da fibra da carne. Ela já tem seus produtos em todos os EUA, em mais de 3,5 mil restaurantes e mercados.
Em comum, os HBP de ambas são muito caros, custando até cerca de seis vezes mais do que o verdadeiro. Os produtores de HBP defendem que isso é uma questão de escala e que, à medida que ela aumentar, essa diferença deverá cair bastante, mas há ainda muita dúvida que isso aconteça de fato.
Um dos pontos cruciais para grande aceitação é o quanto esses HBP serão capazes de satisfazer consumidores esperando o verdadeiro gosto de carne. Relatos de pessoas que experimentaram esses HPB é que eles até podem passar pelo produto real, mas foi revelador ver uma dessas pessoas ao experimentar comentar: “É bom, mas o queijo (que vai junto no lanche) ajuda muito!”.
Seja a “carne- in vitro” ou os HBP, temos aqui apenas uma substituição de um tipo de produto, à base de carne moída, para um nicho de mercado que acredita nas “vantagens” do produto e tem recursos sobrando para pagar o preço extra. Enfim, apesar deles poderem causar uma competição exatamente na estratégica saída de carne de dianteiro, é improvável que, pelo menos em curto prazo, causem um estrago muito significativo. Além disso, vai levar um tempo para fazerem frente a uma bela picanha ou costela.
INSETOS COMO FONTE DE PROTEÍNA NO LUGAR DA CARNE:
Em alguns lugares no mundo, insetos fazem parte da cultura alimentar, por vezes sendo considerados verdadeiras iguarias. Na maioria dos locais, porém e, em especial, na cultura ocidental a ideia de comer insetos causa repugnância. Tive a oportunidade de experimentar, na Universidade da Califórnia em 2015 (figura 1), uma degustação de insetos em várias formas. Em algumas delas era possível reconhecer o perfil do bicho, mas, na maioria, não, pois é mais comum apenas usarem a farinha feita pela moagem do corpo do animal (Para inveja de quem trabalha na pecuária bovina, o rendimento de carcaça aqui é de 100%!).
Figura 1. Foto de convite para fazer uma degustação de insetos no Campus de Davis da Universidade da Califórnia
Independente da forma consumida, a principal percepção é a que, pelo menos os insetos usados para consumo humano e que experimentei, eles têm um sabor bastante neutro, sendo o gosto proporcionado por algum acompanhamento, como o queijo que recobria uma larva seca ou o chocolate que recobre a barra com a farinha misturada com gengibre. No Brasil, não estamos “comendo mosca” nessa matéria e, no nosso Instituto Federal de Coxim-MS, está sendo desenvolvida uma linha de pesquisa de criação de insetos para consumo humano. O coordenador das pesquisas é o Prof. Ramon de Minas, que é agrônomo e biólogo, e seu trabalho foi alvo de reportagem do Globo Rural.
Mas o consumo humano não deve ser a principal destinação dos insetos. Também na UCDavis, nessa mesma época, numa palestra do chefe de pesquisas da Mars Foodservice, uma das maiores produtoras de alimentos do Mundo, ele comentou que para as próximas décadas espera-se um “Vazio Proteico” (“Protein Gap”) que deverá ser mitigado pelo uso de insetos cultivados em fazendas como matéria prima para rações. Essa fonte alternativa deve ser especialmente usada na aquicultura, mas também por aves e suínos.
O mesmo palestrante comentou um caso interessante de uma “startup” chamada AgriProtein que realiza, desde 2015, a bioconversão de resíduos orgânicos em larvas de moscas que são usadas para alimentação animal. Nessa época, ela já estava com uma operação em uma grande cidade sul-africana, quando teve suas operações interrompidas por questões de legislação sanitária local. Ocorre que, o poder público da cidade estava muito interessado no serviço que ela prestava em reduzir o problema com o lixo orgânico da cidade. Esse interesse no serviço ambiental prestado pela empresa ajudou com que essas arestas fossem aparadas e a AgriProtein expandiu suas operações para mais cidades e já tenta cruzar as fronteiras. Nas suas duas maiores fazendas, na Cidade do Cabo, ela coleta mais de 100 t de lixo orgânico que produzem 20 t de larvas. O resíduo do processo é húmus, que aumenta o faturamento. Quando as larvas atingem o tamanho de colheita, são lavadas, secas e comprimidas para extrair óleo. O restante é moído, embalado e vendido às fábricas de ração, num valor imbatível em relação às fontes tradicionais (farinha de peixe e soja).
O desafio legal, assim como ocorreu com a AgriProtein em seu país, ainda é um empecilho para o aumento da atividade. A Comunidade Europeia (CE) tem uma legislação que proíbe alimentos descartados com carne para animais de produção, incluindo insetos, bem como bane farinhas de insetos na alimentação animal. Apenas para ração de animais de estimação é permitido o uso. Essa posição da CE tem influenciado muitos países não europeus, segundo o artigo de Andreas Stammer publicado na revista “Science & Society”, pesquisador suíço da área ambiental.
TEMOS ALGO A FAZER NESSE MUNDO EM RÁPIDA TRANSFORMAÇÃO?
Uma das grandes perguntas do pecuarista nesse cenário mutante é “Então eu tenho que mudar meu jeito de produzir só por causa dessas pessoas cheias de vontade?”. A resposta (cínica) é: “Apenas se quiser que a pecuária continue firme e forte!”. Na verdade, é uma questão de mudar voluntariamente agora, de forma programada e inteligente, ou, talvez, ser obrigado a mudar pela força das circunstâncias de mercado mais à frente.
A primeira e mais importante providência é respeitar as escolhas pessoais, sem tentar achar defeitos no fato da pessoa ser vegetariana, vegana ou seja lá o que for. Em adição a isso, não cair na armadilha de desperdiçar seu tempo em responder às campanhas anti-pecuária desses grupos, cujo resultado tem sido apenas dar mais visibilidade para as injúrias que, em função de anos de discurso anti-pecuária, acabam transformando os detratores da carne bovina em vítimas, e os produtores, mesmo que cobertos de razão, em vilões.
A questão se agrava por estarmos na era da pós-verdade que, conforme o dicionário Oxford define é “relacionar ou denotar circunstâncias nas quais os fatos objetivos têm menos influência em formar a opinião pública que os apelos à emoção e crenças pessoais”. Isto é tomam-se decisões baseadas em emoção, preferência, lealdade e tribalismo, ignorando os fatos, dados concretos ou a prova científica.
Por isso que, na maioria das vezes, é inútil tentar mostrar para um vegano dogmático, dados contra alguns de seus mantras, mesmo que insuspeitos e da melhor procedência, pois ele está programado apenas a aceitar o que reforça sua crença.
Uma técnica para furar o bloqueio deste tipo de situação é tentar achar algum ponto comum entre as partes para começar a conversa. Por exemplo, o pecuarista elogiar o respeito do vegano pelos animais e dar exemplos que, na fazenda dele, há respeito aos animais também. Nenhuma garantia que isso mude a atitude do interlocutor, mas aumenta muito a probabilidade de, pelo menos, haver a manutenção de conversa civilizada que permita um aprofundamento do conhecimento da realidade de lado a lado. Outros assuntos potencialmente convergentes estariam relacionados à questão ambiental, à responsabilidade social e outros aspectos de bem-estar animal.
Para que a proposta de tentar “destravar” o diálogo entre opostos seja efetiva, todavia, ajuda muito ser baseada em algo mais do que palavras vazias, mas atitudes concretas. Assim, é desejável que o produtor se preocupe com essas questões, mesmo porque ele mesmo será o principal beneficiário: ter uma propriedade saudável ambientalmente ajuda na produção (biodiversidade que ajuda a controlar pragas, menor perda de solo por erosão, maior retenção de água, etc.), usar técnicas de bem estar animal reduzem riscos de contusão dos animais e acidentes, bem como costumam aumentar o desempenho individual e, por fim, a responsabilidade social, além de evitar sanções legais, ajuda a reter uma mão-de-obra de melhor qualidade e que trabalha mais satisfeita.
Enfim, as ameaças parecem não ser assim tão grandes, mas é bom que o ambiente seja sempre monitorado, que se entendam as motivações delas prosperarem e que a cadeia da carne bovina se movimente no sentido de, sabiamente, se adequar aos anseios dos consumidores.
Por isso, se para você coisas como boas práticas de produção, sustentabilidade, intensificação sustentável e bem estar animal soam distantes, é uma boa hora para rever conceitos e tentar ver o que se pode ganhar com elas hoje, para que a pecuária continue a produzir proteína animal de alta qualidade, de fontes alimentares que não competem com o humano, mesmo em áreas marginais, sem aptidão agrícola e que continue ajudando a se obter melhores resultados de produção agrícola na integração lavoura-pecuária. Tudo isso, num horizonte temporal a se perder de vista.
Agradeço a leitura atenta, correções e sugestões dos colegas Maxwell Parrela Andreu, Gilberto Romeiro de Oliveira Menezes, Karem Guimaraes Xavier, Rosangela M. Simeão Resende e Mateus Figueiredo dos Santos.
*Pesquisador da Embrapa Gado de Corte, agrônomo com mestrado (1992) e doutorado (2002) pela ESALQ/USP, especialista em nutrição animal, atuação em pesquisa com os seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.
Fonte: Scot Consultoria