A ideia é ter a percepção das pessoas sobre o assunto. Por isso, vamos ver o que estaríamos perdendo ao abrir mão de nosso rebanho de bovinos!
*Por Sérgio Raposo de Medeiros
No mês passado, neste espaço, fiz um arrazoado de *qual seria o impacto nas emissões globais de gases do efeito estufa se o rebanho bovino brasileiro, do dia para noite, sumisse. O resultado deve ter frustrado muita gente pelo baixo potencial e a mais provável inexistência de impacto, considerando o que realmente deveria ocorrer.
*Confira o resultado da pesquisa instantânea, via aplicativo de mensagens, com a seguinte pergunta: “Veja a pergunta abaixo e responda sem consulta. A ideia não é ter o número correto, mas a percepção das pessoas sobre o assunto. Lá vai: “se, por mágica, o rebanho bovino brasileiro desaparecesse, quantos porcento você acha que reduziria na emissão mundial de gases de efeito estufa? (a) 1% (b) 5% (c) 30% (d) 45%”.
Nesta oportunidade, vamos ver o outro lado dessa questão: o que estaríamos perdendo ao abrir mão de nosso rebanho.
1) Menos dez milhões de toneladas de alimentos por ano
A primeira desvantagem em sumir com o nosso rebanho de bovinos seria ter um valor superior a 10 milhões de toneladas anuais a menos de um alimento proteico de altíssima qualidade para os consumidores brasileiros e para o mundo. O mercado interno teria um buraco de mais de 7 milhões de toneladas e, o restante, deixaria desabastecido mais de 100 países em todo mundo da carne aqui produzida.
2) Necessidade de aumento de produção de proteína animal por monogástricos e alimentos vegetais
Para compensar a redução de disponibilidade da carne vermelha bovina, seria necessário aumentar a produção de outras fontes de proteína animal e de alimentos vegetais, como cereais e olerícolas. Os sistemas de produção de monogástricos, isto é a cadeia de produção suína e da avicultura, têm como característica serem muito intensivos, portanto são mais dependentes do uso de energia e de insumos. Por exemplo, em termos globais aves e suínos usam, em média, de 3 a 4 vezes mais antimicrobianos do que bovinos, sendo que, especificamente no Brasil, essa diferença deve ser ainda maior.
O maior uso de energia e insumos traz um impacto negativo para indicadores ambientais, como eutrofização, acidificação, aumento de resíduos de medicamentos e de defensivos agrícolas, maior uso de combustíveis fósseis e outros.
3) Desafios nutricionais
Os substitutos da carne bovina não têm uma equivalência nutricional com ela, ou seja, eles são mais pobres do que a carne em vários nutrientes. No caso da proteína, além da elevada quantidade ingerida por unidade de produto, a composição em aminoácidos se assemelha muito das exigências, que a coloca no conceito de proteína do mais elevado valor biológico. Todavia, a superioridade da carne bovina vai muito além da proteína. A carne vermelha é a principal fonte de vitamina B12, que é inexistente nos vegetais, bem como de selênio e zinco.
No caso do ferro, não só é uma das importantes fontes, mas a forma em que ele se encontra na carne é muito mais disponível ao organismo do que as de origem vegetal. Assim, a simples produção da mesma quantidade de alimentos não iria resolver o problema, pois a carne tem um peso desproporcional no atendimento nutricional de vários nutrientes. Seriam necessários mais de 10 milhões de toneladas de alimentos alternativos à carne bovina para suprir a população da mesma quantidade de nutrientes.
4) Ainda maior necessidade de produção de alimentos
Além da maior necessidade de produção de alimentos para alimentar a população de forma equivalente nutricionalmente, um desafio a mais é porque boa parte da nutrição de aves e suínos é feita com subprodutos da produção de bovinos, como farinha de carne e ossos. Estes são, também, ingredientes das rações de animais de companhia. Da mesma forma que no caso humano, a quantidade necessária é maior do que o equivalente ao que falta, porque os subprodutos dos frigoríficos têm, também, valor biológico maior do que os ingredientes substitutos de origem vegetal.
5) Aumento de necessidade de fertilizantes químicos
Além da necessidade de aumento de uso de fertilizantes para produzir alimentos para humanos e para animais, a ausência do rebanho faria um outro subproduto menos disponível: o esterco. Apesar do uso dos dejetos de bovinos ainda ser incipiente, ele não é irrelevante quando se olha quanto se economiza de fertilizantes químicos quando ele é usado. Além disso, o fertilizante orgânico tem grandes vantagens sobre os químicos na parte de melhorar as qualidades físicas e biológicas do solo, inclusive melhorando o aproveitamento deles.
6) Aumento de necessidade de produtos sintéticos
Há uma frase que “do boi só não se aproveita o berro” e, de fato, há uma miríade de subprodutos ou coprodutos que vão desde o já comentado uso em rações de monogástricos até o caso de insumos à indústria farmacêutica. Para focar em um dos mais relevantes, há o couro, usado para fazer utensílios, móveis, roupas e estofamento em veículos. O valor envolvido na produção de couro no Brasil por ano chega próximo a US$ 2 bilhões, o que dá uma ideia da grandeza do setor e o desafio que seria substituir todos os produtos que são gerados a partir desse subproduto por materiais sintéticos.
Estes seriam, principalmente, polímeros provenientes do uso de petróleo, algo que, pela energia usada no processo, não contribuiria nada com o balanço de carbono na atmosfera, além de aumentar resíduos, como plástico e congêneres, que demoram muito tempo para se degradar, trazendo um impacto ambiental negativo para além dos gases de efeito estufa.
7) Menos um “banco” para os mais pobres
A ideia da maioria das pessoas distante do mundo rural é que o pecuarista é sempre dono de milhões de cabeças e dono de terras a perder de vista. Produtores assim existem, mas a grande maioria não se enquadra nesse estereótipo e existem muitos produtores que têm apenas alguns poucos animais. Para esse extrato de produtores que vivem em localidades distantes de qualquer serviço bancário, o rebanho é sua poupança. Assim, quando surge algum aperto financeiro, vende-se um animal e o dinheiro apurado é usado para honrar os compromissos. Essa é uma função social do gado bovino que a maioria das pessoas desconhece e que tem um grande significado para aqueles que precisam desse mecanismo em suas vidas.
8) Carestia
A necessidade de produzir mais alimentos com maior uso de insumos e que terão que substituir, inclusive, ingredientes usados na nutrição de monogástricos e pets, certamente é uma pressão para aumentar o preço dos ingredientes e dos alimentos produzidos com seu uso, pela inescapável lei da demanda e oferta. Pesa muito para agravar essa situação perder duas grandes vantagens da nossa pecuária bovina: (i) os sistemas de produção no Brasil são baseados em pastagens e usam pouco de ingredientes como milho, farelo de soja etc. e (ii) boa parte da produção é feita em áreas marginais, isto é, onde não se faz agricultura.
Este último fato tem dois outros desdobramentos: (a) aumento do preço das terras, especialmente das mais aptas à agricultura, e (b) aumento da necessidade de corretivos e fertilizantes para produzir em áreas menos aptas. Tudo combinado, muito improvável não se prever um aumento do custo de vida. Aqui o título fica bem justificado.
9) Jogar fora um caso de sucesso no qual somos globalmente competitivos
Se há um caso de sucesso no Brasil, é o de sua cadeia da carne bovina. Ao contrário da percepção da maioria dos brasileiros, é um setor que usa bastante tecnologia, em grande parte “made in Brazil”. Temos a genética animal que veio da Índia, com os zebuínos, e as forrageiras que vieram do continente africano, mas hoje já são produtos que passaram por intenso trabalho dos nossos melhoristas e podem ser considerados produtos nacionais.
Com essa dupla e uma série de outras tecnologias, como suplementação em pastagem e inseminação artificial, nos tornamos um dos maiores produtores mundiais, com um sistema de produção em que 98kg de cada 100kg de carne são produzidas com base em pastagens. Com isso, fizemos, basicamente de capim, US$ 8,5 milhões em exportações em 2021. O trabalho da pesquisa e do campo somado nos tornou extremamente competitivos nesse mercado. O melhor é que a cadeia de carne bovina é provavelmente um dos setores com mais oportunidades de ganhos em produtividade.
A produção média brasileira é próxima à 3 arrobas por hectare, mas há produtores que conseguem produtividades até 30 vezes maiores do que essa. Em várias áreas, como nutrigenômica ou pecuária de precisão, estamos apenas começando e avanços nessas áreas permitirão saltos de produção, com muito mais eficiência e significativo menor impacto ambiental.
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10) Perda de qualidade de vida
Abolir a carne bovina da dieta é um fator de perda de qualidade de vida. Na parte mais subjetiva, temos que ela é um objeto de desejo de muitas pessoas que não podem comprá-la ou que consomem aquém do desejado por falta de poder aquisitivo. Prova dessa avidez pelo produto é que, a qualquer aumento de renda na população, há reflexo imediato em aumento do consumo de carne bovina. Ela, ao contrário das demais carnes, não causa a monotonia alimentar, ou seja, pode fazer todo dia parte do cardápio que não se ouvirá a queixa “carne bovina…de novo!”. Há, todavia, uma parte ainda mais importante de qualidade de vida, no que tange a nutrição mesmo. A carne, em uma dieta completa, com cereais, verduras, legumes etc., ajuda muito no seu balanceamento, por ser bastante concentrada em energia e nutrientes, além de ter alta digestibilidade.
Assim, ela permite dietas com menos açúcares livres dos cereais (o amido do arroz, por exemplo), reconhecidos hoje principais responsáveis pelo aumento da síndrome metabólica. O consumo de carne bovina ajuda muito a reduzir deficiências nutricionais, incluindo a anemia ferropriva. Ela é a principal carência nutricional no mundo, sendo responsável por enormes prejuízos financeiros e de qualidade de vida, especialmente para as camadas mais pobres da população.
Creio que, na comparação entre o que se ganharia com e sem o rebanho brasileiro, fica claro que é melhor tê-lo. O caminho virtuoso é continuarmos na trilha de incorporar tecnologia, agora, também de olho na escolha de opções que incluam o componente de sustentabilidade da pecuária. Ser sustentável nada mais é do que perdurar no tempo. O que é bom e nos ajuda a viver melhor, tem que durar.
*Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.