Diante do cenário desafiador enfrentado pelos produtores rurais, o microssistema de insolvência empresarial brasileiro avança para garantir maior eficiência na recuperação do setor agrícola
Por Léticia Moura* – Há mais de doze mil anos, a agricultura transformou a trajetória humana de forma profunda, possibilitando o abandono da vida nômade e o surgimento das civilizações que conhecemos. Assim, a sua importância vai além dos registros históricos: é ela que, ainda hoje, nos fornece os alimentos que chegam às nossas mesas e sustentam nossas famílias e, consequentemente, favorecendo um aumento generalizado da população mundial.
No Brasil, o avanço da agricultura traçou um percurso semelhante, transformando pequenos vilarejos em grandes polos de produção de grãos que hoje conectam vastas regiões do território nacional. Exemplos notáveis incluem Dourados (MS), Rio Verde (GO), Barreiras (BA), Uberlândia (MG) e Rondonópolis (MT).
Embora a história evidencie sua enorme importância, o setor agrícola brasileiro enfrenta hoje uma grave crise econômica e ambiental. Queimadas, mudanças climáticas e instabilidade econômica pressionam o setor, levando a projeções alarmantes para a safra de soja e milho, que pode registrar o maior prejuízo dos últimos 25 anos.
Em termos numéricos apurados em 16 de outubro de 2024, o PIB do agronegócio brasileiro, calculado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) da Esalq/USP, registrou queda de 1,22% no segundo trimestre, acumulando uma retração significativa de 5,1% no ano.
O PIB do setor pecuário também apresentou recuo no trimestre (-1,2%), mas ainda exibe uma alta de 0,5% em 2024. Esse crescimento parcial no ramo pecuário é impulsionado, principalmente, pelo desempenho positivo nos segmentos agroindustrial e de agrosserviços, que apresentam aumentos de 5,29% e 3,78%, respectivamente, no ano.
Diante do cenário desafiador enfrentado pelos produtores rurais, o microssistema de insolvência empresarial brasileiro avança para garantir maior eficiência na recuperação do setor agrícola. Como uma ferramenta importante para auxiliar esses produtores na reestruturação de dívidas e continuidade no mercado, a recuperação judicial ainda busca adaptações específicas para atender com eficácia às particularidades do campo.
Um desses avanços, talvez dos mais essenciais, seja o avanço da visão dos Tribunais sobre a essencialidade dos grãos aos produtores rurais agrícolas em recuperação judicial.
O Superior Tribunal de Justiça tem adotado uma definição objetiva, e até mesmo rígida, de bens essenciais, limitando-a aos bens de capital que estão sob a posse do devedor e que são utilizados no processo produtivo da empresa. Essa interpretação considera esses bens como fundamentais para o exercício da atividade econômica do empresário (REsp 1.758.746/GO, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25/09/2018).
No contexto da atividade de produtor rural, os bens de capital considerados essenciais são aqueles voltados para o cultivo, colheita, armazenamento ou transporte da produção, como maquinários, silos, colheitadeiras, tratores e veículos. Por outro lado, o resultado da produção, como a safra ou o produto agrícola, não é classificado como bem de capital, e, portanto, sua essencialidade não é reconhecida para a atividade empresarial rural (REsp 1.991.989/MA, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 03/05/2022).
Entretanto, sabe-se que a aferição dessa essencialidade deve ser realizada com base nas circunstâncias específicas de cada caso, sob o risco de afastar o instituto do seu objetivo principal: viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (art. 47 da Lei nº 11.101/2005).
É notório que, quando se fala em recuperação judicial de produtor rural agrícola, grande parte dos seus créditos advém de garantias vinculadas à Cédula de Produto Rural como liquidação física.
Esse mecanismo é fundamental, pois possibilita que o produtor rural mantenha suas operações, enquanto oferece aos credores uma garantia eficaz para assegurar o recebimento dos créditos por meio da entrega dos produtos. Nesse contexto, o penhor agrícola — que abrange o penhor rural e a cédula pignoratícia — pode incluir, entre outros, a colheita pendente ou em fase de formação, que é objeto da Cédula de Produto Rural firmada entre as partes.
Todavia, esses créditos e as garantias cedulares, vinculados à Cedula de Produto Rural, em consequência da extraconcursalidade do crédito não se submete aos efeitos da recuperação judicial (art. 11 da Lei nº 8.929/1994).
Muito embora a visão do STJ afaste os grãos do conceito rígido – e um tanto simplista quando pensado sob o prisma de uma área tão dinâmica e específica quanto à do agronegócio – de bens essenciais, os Tribunais de Justiça, por sua vez, aparentam se voltar cada vez mais à uma análise individual e específica aos casos concretos postos à deliberação, trazendo uma orientação divergente para o crivo de caracterização da essencialidade.
Nesse ponto, conforme pontudado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) no bojo do Agravo de Instrumento nº 5453447.63.2023.8.09.0082: “o caso do produtor rural é atípica frente as demais empresas comuns e, na maioria das vezes, o produto agrícola é a principal moeda de troca capaz de fazer o negócio alavancar, de modo que os atos de constrição e expropriação patrimonial podem colocar em risco a continuidade das atividades empresariais e a própria finalidade do instituto da recuperação judicial”.
Nesse caso, o Poder Judiciário consignou que a privação de grande volume do produto agrícola (60 quilos de soja) teria o condão de representar considerável desfalque na contabilidade do Recuperando, de modo que este, dificilmente, alcançaria a finalidade do instituto recuperacional que é, exatamente, o soerguimento empresarial e a realocação no mercado produtivo.
À vista disso, aplicou, nesse caso concreto, o impedimento de atos expropriatórios desses grãos, no período do stay period, previso no artigo 6º, § 4º da Lei nº 11.101/2005 (TJ-GO 5453447-63.2023.8.09.0082, Relator: RICARDO PRATA – (DESEMBARGADOR), 7ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/11/2023).
Desse modo, em conclusão, é evidente que este julgado, assim como tantos outros de natureza semelhante, sinalizam uma mudança significativa na abordagem do Poder Judiciário em relação à conceituação da essencialidade de bens na recuperação judicial. Percebe-se que o Judiciário, principalmente naqueles polos essenciais ao agronegócio, está se voltando de maneira mais criteriosa e atenta às necessidades específicas de cada empresa ou empresário em recuperação judicial, reconhecendo suas complexidades e singularidades das situações enfrentadas em cada setor.
Por sua vez, essa postura reestabelece os laços com a mens legis da Lei nº 11.101/2005, reafirmando o seu compromisso com os objetivos basilares de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Letícia Moura, advogada especializada em Falência e Recuperação de Empresas no escritório João Domingos Advogados
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