Uma conhecida máxima de administração de empresas chegou aos currais brasileiros: o que é medido, é gerenciado.
E isso está ocorrendo graças à ajuda de “gadgets” com alta tecnologia embutida que passaram a ser colocados nos rebanhos em fazendas de gado do país.
A coleira, por exemplo. Do papel decorativo em cães e gatos egípcios já na Antiguidade, no século XXI passou a esconder chips e funções bem mais complexas. Uma delas é o monitoramento da ruminação, que pode indicar debilidades no animal e antecipar o tratamento de uma doença antes que ela se instale. Outra é a detecção de oscilações na temperatura corporal, que indicam o momento certo para a reprodução – com vacas, um cio perdido é sempre receita perdida.
Há em execução atualmente no Brasil dezenas de aplicações diferentes de softwares e hardwares envelopados em coleiras, brincos e balanças inteligentes que geram informações capazes de elevar a produtividade e diminuir o custo de criação de bovinos. Transmitidos em tempo real ou armazenados em nuvem, esses dados começam a fortalecer o recente movimento de digitalização da pecuária, impulsionado pela chegada de startups.
O “boitech” ainda pasta, rumina, se estressa e adoece. A diferença, agora, é que tudo isso já pode ser previsto com dias de antecedência e precisão nunca vista, diz Gustavo Junqueira, diretor da Inseed Investimentos. A gestora mineira já alocou R$ 7 milhões na Intergado, na Cowmed e na Imeve, três startups brasileiras de pecuária de precisão das 13 “agtechs” que receberam aportes.
Em fase final de elaboração, o 2o Censo de startups agropecuárias realizado pela Esalq/USP e pelo Agtech Garage, de Piracicaba, aponta uma expansão importante no ecossistema de inovação no campo. Entre 2016 e 2018, o Brasil ganhou 110 empresas voltadas ao setor. Eram 76, passaram a 186. Dessas, 30% trabalham com soluções para pecuária de corte e 20% para a leiteira (algumas atuam na duas frentes).
“Existe margem grande para implantar muitas melhorias no sistema produtivo bovino”, diz José Tomé, sócio-fundador do AgTechGarage, e isso tem atraído a atenção de fundos e da indústria.
Com nomes muitas vezes autoexplicativos – 4milk, Arrobatech, Inprenha, BovControl, Pastar -, essas startups têm como potencial de crescimento a demanda por proteína animal em mercados como a China e um rebanho de 180 milhões de cabeças com uma gestão, em geral, ainda deficiente
Isso é uma realidade particularmente nas bacias leiteiras do Sul e do Sudeste, onde a coleta de dados dos animais é frequentemente feita no papel, diz Ana Júlia Moreira, da 4milk. “A grande parte das propriedades de leite do Brasil são pequenas e têm controle manual da produção. E, para nós, não interessava comunicar só com os grandes”, afirma ela, egressa da área de computação voltada ao setor rural.
Ana Júlia se juntou ao time de Claudio Notini, outro veterano da computação que também bandeou para o campo após vender a RM Sistemas à Totvs, em 2006, por R$ 165 milhões. Por questões contratuais, o executivo teria de ficar fora do mundo tecnológico por anos, e ele foi “se distrair” na fazenda da esposa em Santana do Pirapama, em Minas Gerais. A má gestão do rebanho lhe deu calafrios.
Em 2015, a 4milk lançou seu aplicativo para celular, tablet ou desktop que compila informações e gera relatórios que podem ser compartilhados com profissionais fora da fazenda. Parece básico, mas a digitalização já amealhou 1,2 mil produtores de leite à startup.
Nas propriedades de corte, as dores do segmento são mais sofisticadas, mas não menos aflitivas. Uma das questões mais comuns ainda é: o quão pesado um boi precisa estar para fazer valer seu custo de produção?
“Chega um momento em que a dieta não acompanha mais a evolução do peso do animal, então ele tem que ser abatido [para não dar prejuízo]. Mas nem sempre é fácil saber o ponto ótimo econômico da pecuária”, diz Thiago Lobão, especialista em investimentos em agtechs da gestora SP Ventures.
A inteligência artificial está ajudando nessa análise. A Ecotrace, do município paulista de Vinhedo, desenvolveu um software que promete amainar a histórica desconfiança entre produtor e frigorífico. Uma câmera acoplada na sala de abate fotografa a carcaça logo após a retirada o couro do boi. É interessante porque mostra ao pecuarista o estado exato do animal antes de ser fatiado – ele pode ter sofrido lesões no transporte, por exemplo, e hematomas precisam ser retirados. Isso diminui seu peso. Para a indústria, retira a subjetividade da classificação de gordura corporal, hoje feita por um funcionário.
“Desenvolvemos algorítmos que calculam o peso da carcaça a partir da fotografia”, afirma Flavio Redi, fundador da Ecotrace.
Com os chips, passou a ser possível medir sinais vitais e comportamentais. Os brincos atuais – uma evolução comparados aos modelos de plástico do sistema federal de rastreamento bovino, o Sisbov – oferecem a ficha técnica completa do boi. Onde nasceu, idade, carteira de vacinação, doenças e sua localização georreferenciada. As balanças são tão mais precisas que o animal pode ser pesado só de caminhar sobre o equipamento (antes, mesmo parado, um abanar de rabo mexia nas casas decimais).
Eles também medem a temperatura e a movimentação do animal, que dão boas pistas de cio, prenhez e doenças e outros problemas. Se um boi está muito tempo parado, possivelmente está doente ou preso em algum lugar. Agitado, pode provocar conflitos no rebanho.
Há experiências em curso de alojar chips até no estômago do bovino, onde a medição de temperatura é ainda melhor. Mas como o chip fica ali até o abate, a bateria tornou-se o senão, já que sua vida útil é bastante inferior à média de dez anos vividos por uma vaca.
Nos EUA, empresas como a eShepherd já utilizam coleiras também como substitutas a cercas – o boi se aproxima da linha imaginária da propriedade e leva um leve choque no pescoço, sinal de que dali pra frente não pode ir. É um ganho econômico significativo (pense nos latifúndios brasileiros) com redução de investimentos em cercas e proteção de áreas ambientalmente sensíveis.
“Poxa, isso seria maravilhoso”, sonha em voz alta Marcelino Mondel. “Podiam fazer isso aqui”. Ele tem 150 vacas leiteiras em Carambeí, no Paraná, e tornou-se fã das coleiras inteligentes que colocou em seu rebanho há dois anos.
“É bem simples: imagina o teu médico ligando para dizer que se você não tomar um remédio logo pode morrer em horas. Era assim com as minhas vacas. Quando a doença aparecia, tinha de correr. A coleira desonerou minha mão de obra, maximizou meu tempo e reduziu a perda de matrizes”, diz ele.
Mondel assina os serviços da CowMed, startup gaúcha de coleiras inteligentes. Recebe de três a quatro alertas por dia pelo celular sobre a saúde do rebanho. A notificação informa número do animal, horário e tipo de problema detectado.
A CowMed monitora três variáveis: movimentação, ócio e ruminação, outro poderoso sinalizador de anormalidades. Nas vacas, a maior delas é a mastite. A infecção na glândula mamária piora a qualidade do leite e reduz os volumes produzidos. Com a detecção rápida da doença, a taxa de descarte de Mondel passou de 36% para 15% do rebanho – e agora ocorre apenas de forma voluntária, no caso de animais velhos. A produtividade média das vacas, por sua vez, subiu de 27 para 40 litros por animal/dia.
Mudar o protocolo sanitário, rebalancear dietas, separar lotes, comprar e vender, todas essas tomadas de decisão estão ganhando novo ritmo no campo. A arquitetura de dezenas de variáveis fisio-comportamentais, cruzadas e interpretadas pelos algorítimos, permite criar macro padrões e, ao mesmo tempo, olhar individualmente cada animal.
“Na produção em pasto é difícil saber quanto cada boi consumiu. O balanceamento da dieta é estimado. A falta de precisão é custo para o produtor, e isso se aplica a todas as variáveis”, afirma Xisto Alves, da JetBov, startup de gestão de rebanhos.
Fonte: Valor Econômico.