Nelore bombado, conheça a raça criada por brasileiro

Cientistas brasileiros desenvolvem rebanho musculoso com 10% a mais de carne, animais podem reduzir custos ambientais da pecuária e aumentar produtividade.

Numa fazenda de Araçatuba, em São Paulo, vive o primeiro rebanho de uma variedade brasileira de nelore nascida com a promessa de aumentar a produtividade e reduzir os custos ambientais da pecuária de corte. A expansão de pastagens é hoje uma das principais causas de desmatamento. Os novos bois e vacas têm músculos hipertrofiados, que parecem trabalhados em academias de ginástica. Os bezerros, no entanto, são criação de outra academia, a científica. A variedade de nelore bombado é resultado da combinação de tecnologia de genética de ponta e seleção tradicional.

Foto: Nelore Myo

O rebanho turbinado não é transgênico. A genética foi usada para facilitar a seleção e tornar o processo mais preciso. Parte do doutorado do veterinário Rodrigo Alonso, o estudo é resultado de 12 anos pesquisas. Uniu seus conhecimentos sobre nelore com o que se sabia a partir dos testes genéticos do pesquisador Amílcar Tanuri, professor da UFRJ e co-orientador do doutorado de Alonso no Departamento de Reprodução Animal da USP.

Foto: Nelore Myo

Como foi criada a nova vaca

Com a ajuda de testes genéticos que indicam a presença da mutação que leva ao aumento da massa muscular, pesquisadores desenvolveram a uma variedade de nelore a partir do cruzamento dessa raça com a belgian blue.

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Gráfico: O GLOBO

OBS: nos animais heterozigotos (somente com uma cópia do gene mutado) o ganho de massa muscular não é tão significativo. Por isso, a meta foi chegar a um animal totalmente nelore e homozigoto (com as duas cópias do gene alteradas). Essas são as supervacas.

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Foto: Divulgação

Alonso explica que a supermusculosa variedade, batizada de Nelore Myo, é mais produtiva porque tem mais carne. Vaca com mais músculo é vaca com mais carne. E carne mais macia.

— O que o consumidor chama de músculo é o corte de menor qualidade, das partes mais duras do animal, mas isso não é o correto. Para o produtor, músculo é toda a carne. No caso da Nelore Myo, ela também é muito mais macia porque há menor deposição de colágeno. Há ainda aumento das carnes nobres do traseiro — diz Alonso.

Um nelore em ponto de abate pesa cerca de 500 quilos. Desse total, em torno de 265 quilos são carne e osso, as partes efetivamente pagas pelos frigoríficos. No Nelore Myo, chega-se a 300 quilos de carne e osso.

— Passamos de 53% a 55% para 60%, em termos de aproveitamento. No primeiro abate técnico, houve um ganho de três arrobas. Pela cotação atual do boi gordo, isso dá um ganho extra de R$ 365 por animal. O Nelore Myo parece mais pesado, mas ele tem mais massa magra, muscular. Por isso, tem mais carne com o mesmo peso — afirma Alonso, coordenador científico do projeto.

Os pesquisadores destacam que a maior produção por animal significa ganho ambiental.

— Você reduz a necessidade de mais pastagens. A pecuária brasileira é muito improdutiva. O que propomos é aumentar a produção sem aumentar pastagens — salienta Tanuri.

Atualmente, o Brasil tem 200 milhões de hectares ocupados por pastagens. Isso representa pouco menos de um quarto do território nacional, com densidade de cerca de um animal por hectare, segundo a Embrapa. A eficiência é baixa.

Gado europeu não se adapta ao Brasil

Os dois pesquisadores deram ao nelore as características e o porte do gado de corte europeu, que é mais produtivo, mas incapaz de se adaptar ao clima tropical da maior parte do Brasil. O nelore, originário da Índia, está mais do que em casa por aqui, representando cerca de 80% das 200 milhões de cabeças de gado de corte locais. Resistente e bem adaptado, ele ganhou porte atlético graças a uma mutação que normalmente não apresenta, no gene da miostatina, associado ao desenvolvimento muscular. Essa modificação pode ocorrer naturalmente em todos os vertebrados, de seres humanos a peixes. Ela confere uma aparência extremamente musculosa e já foi identificada em crianças que nascem muito fortes. Com a mutação, a miostatina não inibe o crescimento de músculos e confere a seus portadores a chamada dupla musculatura.

Vacas de raças europeias, em especial a belgian blue, foram selecionadas por terem essa mutação e serem muito musculosas.

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Gado-Belga-azul / Foto: Divulgação

A belgian blue, assim como outras semelhantes, não se adapta ao clima do Brasil. Se fôssemos fazer somente a seleção tradicional por cruzamentos pouco específicos, levaríamos cerca de 30 anos para chegar ao resultado que obtivemos em 12 — explica Alonso.

A primeira etapa foi cruzar o nelore com a belgian blue, por inseminação artificial. Com testes genéticos, selecionaram os filhotes que tinham a mutação e estes foram usados para a reprodução. A partir daí, somente embriões de nelore com mutações foram escolhidos.

Foto: Nelore Myo

— Após cinco gerações, obtivemos animais que são quase 100% nelore, mas têm a mutação. Eles já nascem mais musculosos — diz Alonso.

Hoje o rebanho de Nelore Myo tem cerca de 500 animais de diferentes idades e graus de pureza nelore, todos com a mutação.

— Cinquenta bezerros já são da quinta geração, 100% nelore e com a mutação. Há também 20 mil doses de sêmen para distribuir para produtores interessados no projeto — frisa Alonso.

Mais que bois e vacas fortes, foi também uma demonstração de força da ciência nacional.

— Trata-se de um estudo acadêmico, com forte sustentação científica, que gerou um avanço que pode ajudar a economia. E que já oferece um resultado pronto para a produção — diz Tanuri.

Animais não são transgênicos

A aparência de Arnold Schwarzenegger do mundo dos bovinos do Nelore Myo chama a atenção. Sua modernidade, porém, está ligada apenas ao processo de biotecnologia que permitiu acelerar e aperfeiçoar a mais antiga prática de seleção de animais para produção de alimentos.

Sejam animais ou vegetais, todos os alimentos que consumimos são resultado de uma seleção. Há milênios, o ser humano cruza e seleciona animais com o objetivo de obter características desejáveis. Assim surgiram, por exemplo, todas as raças e variedades de bichos domésticos que conhecemos.

Diferentemente de animais desenvolvimentos por meio de alterações genéticas (transgênicos), os criados por seleção não ganham genes ou mutações em genes que não existam naturalmente em sua espécie.

Volnei Garrafa, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília (Neped/UnB), diz que, por mais que algumas pessoas possam se chocar com certas características, não existe, a princípio, nada de antiético em selecionar características úteis para o ser humano.

— Se essa novidade não traz riscos para a saúde humana ou para o meio ambiente e pode aumentar a oferta de alimento, não vejo problema. Claro, existem outras considerações, de ordem moral, para algumas pessoas. Toda discussão precisa ser plural — afirma Garrafa.

Ele ressalta que isso não diz respeito somente aos animais que são criados para consumo:

— Há, por exemplo, pessoas que são veganas porque se preocupam com o sofrimento dos animais abatidos, mas que, ao mesmo tempo, criam raças de cães altamente questionáveis. Existem cachorros que apresentam cabeças enormes ou corpos disformes. E eles sofrem muito com isso.

Garrafa, conhecido por estudos pioneiros no Brasil sobre transgênicos, clonagem e células-tronco, acredita que a sociedade precisa, sobretudo, se rediscutir:

— O ser humano mudou a si mesmo. Podemos nos reproduzir em laboratório, comemos alimentos transgênicos e prolongamos a vida de modo totalmente artificial. Nada mais é natural. Quais são os limites? Essa é uma discussão ética profunda e bastante necessária.

Conteúdo Reproduzido do site O GLOBO

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