Reconhecido por turfistas de todo o Brasil como um dos melhores treinadores do país, Márcio Ferreira Gusso comemorou, na última semana, o seu quarto Grande Prêmio Paraná.
“Quando eu entrava no paddock, às 6h30 da manhã, para começar a treinar, começava a me doer o estômago. Me dava azia.”
Mais do que o gosto do “tetra”, porém, a conquista teve sabor de superação. As frases acima remetem de pronto a uma sensação de dor. Sensação esta que poderia ser facilmente relacionada a uma ideia de incômodo, ou frustração.
Difícil acreditar, porém, que o relato, além de recente, partiu do homem que, sorridente, recebia, na última semana, o seu quarto troféu do Grande Prêmio Paraná.
Nome de admiração compartilhada por criadores, proprietários e colegas de profissão, Márcio Ferreira Gusso enfrentou, há poucos anos, o período mais crítico de sua jornada enquanto treinador. Discreto, o profissional vivenciou sem alarde – como lhe é peculiar – fatos nos bastidores que, muito embora tenham ocorrido longe do conhecimento de parte dos turfistas, puseram sua carreira em xeque.
“Eu só não parei (de treinar) porque entrou a nova diretoria (do Jockey Club do Paraná). Se naquela eleição, a antiga diretoria tivesse se reeleito, eu teria parado. Isso eu já tinha na minha cabeça. Apenas não parei porque houve o ingresso do interventor judicial, seguido da nova diretoria, e aí as coisas começaram a mudar. Por treinar cavalos de pessoas ligadas à oposição do clube, havia retaliações como multas, desclassificações. Sem contar a frustração de participar de um ambiente desequilibrado de competição, com evidências muito grandes de doping e nenhum controle nesse sentido”.
Há quatro anos, a cocheira de Gusso chegou a contar com apenas 4 animais – aos quais se juntavam outros poucos cavalos alojados nas cocheiras dos Haras Valente e Coudelaria Baptista. Os números revelam-se chocantes à medida que o profissional relembra, outrora, ter respondido por até 120 animais, de uma única vez, no Hipódromo do Tarumã.
“A média de cavalos que eu treinava, anteriormente, era de 80 animais. Num determinado ano, cheguei a cuidar de 120 animais. Só de potros, eu recebia cerca de 60 por ano. Até que, depois de tudo, cheguei a ficar com apenas 4 na minha cocheira.”
Nos momentos mais críticos, dois fatores garantiram o combustível necessário para persistência na profissão. Do lado de fora das pistas, o nascimento da primeira filha, Larissa (hoje irmã mais velha de Beatriz, filhas de Márcio e da médica veterinária Duda Oliveira). Do lado de dentro, o tríplice coroado Fixador.
“Eu resisti porque precisava trabalhar e nessa época nasceu a Larissa, minha primeira filha. Aí você precisa aguentar, não tem jeito. Precisa ir para a frente. E também foi quando surgiu o Fixador. Um cavalo desse padrão te motiva e dá muito fôlego. Você consegue esquecer os problemas, ter foco novamente. Volta a ter vontade de trabalhar. Mas eu diria, ainda assim, que o fator mais importante foi o nascimento da Larissa”.
Cavalariço e segundo gerente de seu pai, Rubens Gusso, já falecido, Márcio ingressou na profissão de treinador em 1982. Ao contrário do que muitos podem supor, porém, a assunção do ofício não derivou de mera influência familiar. Por pouco, aliás, que o hoje treinador bem sucedido, não seguiu carreira no ramo das telecomunicações.
“Eu cursava Administração, na Universal Federal do Paraná, durante a noite, e de dia auxiliava meu pai na cocheira, como segundo gerente. Bem nessa época eu prestei um concurso, para a Embratel, e passei. Portanto, o destino natural seria trabalhar na Embratel. Ocorre que em abril de 1982 meu pai sofreu um infarto e precisou ficar afastado do trabalho até ser operado – o que ocorreu apenas em outubro daquele ano. Nesse intervalo, por uma contingência da vida, acabei tirando a carteira de treinador, sendo obrigado a desistir da vaga na Embratel. Ou seja, não fosse pelo infarto do meu pai, e talvez eu tivesse seguido por outro caminho completamente diferente.”
De lá para cá, o treinador teve sob seus cuidados inúmeros animais que marcaram época no turfe brasileiro. Quando indagado sobre o melhor cavalo que já treinara, Márcio resiste, silencioso, por longos segundos, em responder a ingrata pergunta. Após – a mais do que justificada – dúvida, há rendição para dois deles: Job di Caroline e Fixador.
“O Job di Caroline foi um divisor de águas para mim. O Fixador, um ressuscitador. Duas fases da vida que me marcaram muito. O Job di Caroline talvez não fosse melhor cavalo do mundo, mas se tratava de um cavalo completo. Ele corria na areia, na grama, na pesada, na leve. Muito embora especialista nos 2.000 metros ele chegava com qualidade nos 2.400 e também era ligeiro o suficiente para correr uma milha. Sem contar que seu início foi ao estilo ‘patinho feio’. Um cavalo médio para pequeno, de aproximadamente 450 quilos, e de aprumos não muito corretos. Possuía os joelhos em ‘xis’. ‘Barrigudo’. Mas de um coração muito grande. Ao contrário do Fixador, um cavalo lindo, grande, forte. Perfeito.”
O nome de Fixador volta à baila que a pergunta gira em torno da qualidade, mais prezada pelo treinador, num cavalo de corrida. A gana da vitória, peculiar ao crioulo do Haras Valente, é considerada por Márcio a principal virtude de um animal.
“A vontade de ganhar. O desejo que o cavalo tem de vencer, que está em seu DNA, eu sua alma. Algo visto, por exemplo, no Derby do Fixador. O outro cavalo (Jaspion Silent) vem para dominar e ele (Fixador) parece dizer ‘não, hoje ninguém me passa’. O Fixador volta e não deixa o Jaspion Silent passar dele. Ele tinha gana e vontade de ganhar. Essa qualidade num cavalo de corrida considero algo fantástico.”
Além daqueles que passaram por suas cocheiras, ao profissional é perguntado o animal que mais lhe impressionou, em sua vivência turfística. A resposta é ligeira e resistente: Clackson.
“O cavalo que mais me empolgou foi o Clackson. Eu ainda não havia nem mesmo começado a treinar quando eu assisti à sua vitória no Grande Prêmio Paraná de 1981. Aquilo foi um espetáculo. Ele era tão corredor, mas tão corredor que largava, tomava a frente e fazia um páreo à parte.”
Se o páreo mor do turfe paranaense serviu de palco para Clackson marcar o profissional, como nenhum outro animal fizera até então, Márcio também fez do Grande Prêmio Paraná um marco em sua carreira. Com No Ar, igualou as 4 vitórias detidas por Pedro Nickel Filho, até então o líder isolado, entre os treinadores, com maior número de êxitos na prova. A história do treinador junto ao GP Paraná começou a ser escrita, porém, muito antes. Mais precisamente, em 1989.
“O Golden News estreou ganhando em Cidade Jardim aos 2 anos e depois retornou ao Tarumã. Decidimos, eu e o seu proprietário, Max Rosenmann (deputado federal falecido, titular do Haras Primavera) a direcionar sua campanha para o GP Paraná de 1989. Ele perdeu as duas preparatórias para o Ask Me Why, do Stud Quimivet, ambas em recorde. De corrida para corrida o Golden News vinha evoluindo.”, afirmou.
“No GP Paraná ele levou, se eu não me engano, uma vantagem de 10 quilos em relação a Ask Me Why e Hollatochee, os favoritos. Ambos ficaram esperando atrás, enquanto o Golden News galopava na frente. Assim ele venceu. Era um potro muito corredor. Chegou a ser inscrito no Derby Paulista, que marcou a tríplice coroa do Cacique Negro, com o Falcon Jet formando a dupla a vários corpos. Por uma infelicidade, porém, o meu segundo gerente, ao aparar os pelos dos “machinhos” acabou atorando o boleto do cavalo. Além de fazer forfait no Derby, depois daquilo ele nunca mais se recuperou.”, completou Marcio.
Quase uma década depois, Innamorato consagrou a ótima campanha local – à qual acrescentou, ainda, boas atuações em São Paulo – vencendo o Grande Prêmio Paraná de 1997 para Márcio. Por trás da conquista, um macete do treinador para um mito das rédeas: Juvenal Machado da Silva.
“Trouxemos o Nelson Souza para montá-lo na preparatória, em 2.200 metros. O Innamorato tinha um segredo, como todos os filhos de New Colony: eram animais de partidas curtas. Lá pelos 800 eles começavam a sobrar e o jóquei ‘ia’. O cavalo já havia perdido a quádrupla coroa em Curitiba, nos 2.400 metros, porque o jóquei dominou na curva. Na preparatória, quando conversei com o Souza eu lhe disse a mesma coisa. ‘Lá pelos 800 o cavalo vai começar a sobrar. Não vá. Pare. Porque senão ele domina, se sente sozinho na frente e espera os outros. Eles não gostam disso’. Não deu outra. Nos 800 tomou a frente, entrou a reta a galope e depois ‘morreu’. O Innamorato fez segundo[VAIC1] . Depois que o Souza desceu do cavalo ele disse, ‘esse cavalo é de 2.000 metros, não chega em 2.400’. Nisso, falei com o Juvenal, que aceitou vir montá-lo e assimilou a orientação sobre os cacoetes do cavalo. Se você assistir ao replay, vai ver que o Last Ko passa de galope, por fora, com o Gabriel Meneses, nos 800. Bem nessa altura surge uma passagem, por dentro, para o Inamoratto. A imensa maioria dos jóqueis aproveitaria a passagem e colocaria o cavalo por ali. Mas ele não era a maioria. Era o Juvenal. Obedeceu à ordem e parou o cavalo. Entrou a reta cerca de 6 corpos atrás do Last Ko e acabou ganhando por outros 6, se não me falha a memória, baixando o recorde da distância”.
Após Innamorato, Márcio Gusso alçou voos no turfe fluminense. Radicado no Centro de Treinamentos Verde Preto, da Família Solanés, o profissional atuou, pela primeira vez, com base fixa, fora de Curitiba. O retorno ao Tarumã, no ano 2000, não poderia se dar de melhor maneira. Mais um Grande Prêmio Paraná para a conta, então vencido por Mr. Pleasentfar.
“Peguei o Mr. Pleasentfar logo que eu retornei para Curitiba. Ele venceu o perdedor aqui, depois colocou-se em São Paulo e então passamos a estendê-lo, visando o GP Paraná. Na corrida preparatória ele finalizou em quarto, chegando próximo dos primeiros colocados. O E.G.Cruz havia assumido a sua montaria no ‘Paraná’. Na véspera, porém, nos ‘barrou’. Ficamos a pé, sem jóquei. Por ter fechado um cavalo meu, certa vez, o Jorge Ayarza não despertava muito a minha simpatia, vamos dizer assim. Mas aconteceu que ele sobrou, como a única opção. Resumo da ópera: o Mr. Pleasentfar ganhou o GP Paraná sem eu falar com o jóquei.”
Além do relato folclórico, quando da vitória no GP Paraná, Mr. Pleasentfar também rendeu ao treinador sua primeira experiência internacional. No ano de 2001, o corredor do Haras Garcez Castellano competiu no UAE Derby (gr.III) – vencido por Express Tour (Tour d’Or) para cima do, hoje consagrado reprodutor, Street Cry (Machiavellian).
“Naquele ano, 4 animais embarcaram no Brasil para competir em Dubai, incluindo o Mr. Pleasentfar e o Pitu da Guanabara. Fizemos uma viagem tranquila, uma semana antes da prova. Houve apenas uma parada em Frankfurt, e de lá seguimos para os Emirados Árabes. Na corrida, ele finalizou em oitavo, o que consideramos um bom resultado, vez que competiram 16 e ele chegou à frente de cavalos de qualidade”.
Sobre a incursão em Dubai – e mencionando, ainda que de maneira breve, a recente atuação do argentino Sixties Song no King George VI & Queen Elizabeth Stakes (gr.I), em Ascot – se pergunta ao treinador o quão plausível é, na sua opinião, participar de provas desse calibre, no exterior, sem um prévio período de adaptação. Em outras palavras, viajando para correr, treinando aqui e atuando lá. Para Márcio, se trata de projeto passível de ser executado.
“Acredito que é sim possível. No caso do Mr. Pleasentfar, por exemplo, o animal se adaptou perfeitamente, e só fazia melhorar, dia a dia, até a corrida. No páreo, porém, ele simplesmente não conseguiu acompanhar o train. Corria último, perdido. Na reta de chegada atropelou, mas atrasado. Ou seja, concluí a partir dessa atuação dele, que o que nos falta é experiência, know-how, em relação às características das corridas no exterior. Ritmo, peculiaridades da pista, coisas desse tipo. Veja o exemplo do Pedro Nickel Filho. Foi, passou um, dois, três anos em Dubai. Adquiriu experiência necessária para competir por lá. Cavalos nós temos. Não enxergo a situação, sinceramente, como uma barreira intransponível”, completa.
Se Márcio considerava que escolher o melhor cavalo por ele treinado havia sido o clímax da conversa, em termos de saia justa, nos estertores do papo levado no grupo de cocheiras 38 do Jockey Club do Paraná ainda há tempo para duas perguntas nada simples de se responder.
“Um jóquei? Juvenal Machado da Silva. Treinador… Eduardo Gosik. Ainda na ativa, diga-se de passagem”.
No último dia 24 de setembro, No Ar, 5 anos, filho de Pioneering e If You Want (Giant Gentleman), de criação da Coudelaria Baptista e propriedade do Stud Blue Velvet, sob a condução de Antônio Mesquita e treinamento de Márcio Ferreira Gusso, entrou para a história como o vencedor da versão 2017 do Grande Prêmio Paraná (gr.III).
Fonte: ABCPCC