A tradição secular de marcação de bovinos a fogo deve estar com dias contados dentro das fazendas de pecuária do Brasil. Quais as opções?
É o desejo de diversos pesquisadores especialistas em bem-estar animal, como os integrantes do Grupo Etco – Grupo de Estudos e Pesquisas em Etocologia e Ecologia Animal da Unesp. Confira a entrevista com a doutora em zootecnia e professora da UFMT, Fernanda Macitelli. A zootecnista explicou os impactos negativos da prática e ofereceu alternativas que inclusive melhoram a gestão do pecuarista.
A especialista citou que além da dor que causa no animal, prejudicando o seu bem-estar, a marcação também traz prejuízos à pecuária por conta de danos no couro, que podem levar a desvalorização do preço pago ao produtor. Macitelli citou a reportagem “Problemas de manejo geram US$ 1 bilhão de perdas para o mercado de couro do Brasil”, que informa que problemas de manejo dentro da porteira, como a marcação a fogo em primeiro lugar e parasitas em segundo, são responsáveis por 20% deste montante.
“Às vezes o pecuarista não tem essa informação, mas o couro é responsável por 10 a 15% do valor da arroba. Então se o mercado do couro está interessante, o valor da arroba também sobe. É que o produtor não recebe pelo couro separado. Uma porcentagem do valor da arroba é o couro”, citou.
Macitelli alertou também que já existem ONGs internacionais instaladas em países concorrentes na produção pecuária, como na Índia, que estão usando vídeos da prática no Brasil para diminuir a competitividade da cadeia produtiva nacional. Também citou que empresas de calçados e demais artigos em couro se recusam a fechar contratos para compra da matéria prima brasileira por problemas deste tipo na cadeia produtiva.
Entretanto, a marcação a fogo é uma das principais ferramentas de gestão do pecuarista, identificando seus animais com diversos objetivos, como saber quais indivíduos pertencem ao seu próprio rebanho, nascimento, desempenho reprodutivo, entre outros. Chega até a ser uma obrigação, como no caso da marcação para informar a vacinação contra a brucelose. Então como será possível substituir esta prática por formas mais modernas de gestão de rebanho?
Para despertar esta possibilidade nos produtores, o Grupo Etco, junto com empresas apoiadoras, vai lançar uma campanha de conscientização, conforme revelou a zootecnista. “Nós vamos lançar uma campanha pela redução do uso da marca a fogo e o nome dela será ‘Uma nova marca para o Brasil’. A gente pretende levar esta informação ao pecuarista e às associações de como fazer esta redução e o quanto isso é importante para a nossa pecuária, a nossa imagem e, é claro, para os animais”, informou.
Segundo Macitelli, o objetivo não é proibir a marcação de imediato, mas sim capacitar os produtores a usar outras tecnologias e ferramentas, como tatuagem, brincos e bottons para que eles abandonem aos poucos o uso dos marcadores a fogo.
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A especialista citou exemplos de outros países que já estão no meio deste caminho, como os EUA, que a partir deste ano aboliram a obrigação da marcação a fogo na cara para registrar a vacinação contra a brucelose – uma das mais dolorosas -, substituindo pela tatuagem na orelha direita. No Reino Unido, a marcação a fogo em qualquer parte do corpo dos bovinos foi inclusive proibida. “Na União Europeia nem se fala mais de marca a fogo, se fala apenas de identificação de animais com brinco”, completou.
No Canadá, os produtores não fazem mais a marcação da vacinação contra a brucelose e em outros casos há iniciativas pontuais que estão ajudando a eliminar a prática. A rastreabilidade está sendo feita por brinco eletrônico, a exemplo do que é feito na Nova Zelândia. O país da Oceania, no entanto, ainda não retirou a marcação da vacina contra a brucelose, embora haja tendência da proibição. Já no país da América do Norte, a associação nacional dos criadores da raça Angus, por exemplo, não usa mais a marca a fogo – se o animal tem 50% de sangue Angus ele é identificado eletronicamente e, se for puro, recebe tatuagem mais a identificação eletrônica.
“A gente tem que começar a pensar no que a ciência, a evolução e a tecnologia vêm trazendo como outras formas de identificar os animais e que não é preciso colocar tanta marca. O que nós, do Grupo Etco, estamos propondo não é retirar toda marca a fogo, vamos reduzir ao máximo. Não precisa colocar o mês e o ano de parição da vaca, e cada vez que ela pare, o mês e o ano de nascimento do bezerro. Ou seja, tantas marcas que são desnecessárias, causando dor. Na verdade, não é nada ético a gente fazer esse tipo de trabalho. Então a gente tem que seguir o que a ciência e o que a tecnologia nos mostram, que existem formas muitos melhores. Inclusive se a gente faz a identificação com brincos eletrônicos, ou com brinco comum, o que a gente tem é um gerenciamento até melhor dos nosso dados na fazenda, acompanhamento de desempenho melhor, individual desses animais, do que identificação feita no couro mesmo”, justificou. A especialista salientou que o produtor não deve fazer do couro de seus animais um tipo de planilha de “excel ambulante”.
Segundo Macitelli, o Brasil também já tem iniciativas pontuais. Em 2016, o coordenador do Grupo Etco, Mateus Paranhos, já havia pedido em carta para o então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, a retirada da obrigação pela marcação após aplicar vacina contra brucelose por conta da dor aguda dos animais e também pela pouca eficácia – a marcação em si não comprova que de fato a rês foi imunizada. Também as associações de Hereford e Braford e Girolando não usam mais a marcação para registro dos animais de rebanhos afiliados, mas sim brincos eletrônicos. No Rio Grande do Sul, um programa do governo do estado também está visando a redução do uso da marca a fogo, em que fizeram uma solicitação ao Mapa para usar brincos que informem que os animais foram vacinados contra brucelose e também que testaram negativo para brucelose e tuberculose.
O coordenador do Grupo Etco inclusive realizou recentemente um estudo em parceria com a Agropecuária Orvalho das Flores, da pecuarista Carmen Perez (relembre sua história nas reportagens abaixo), para levantar informações que validem o método de redução da marcação a fogo. No estudo, somente um pouco mais de 1% dos animais perderam seus brincos, uma taxa de retenção que dá suporte aos objetivos do grupo.
Macitelli respondeu ainda dúvida de um produtor quer perguntou o que acontece no caso de o animal perder o brinco. “Tem a tatuagem. O animal recebe a tatuagem com o número da mãe e aí, se o brinco cair, você pode ver na tatuagem o ano, quem foi a mãe daquele bezerro e que brinco ele tinha e mandar refazer o brinco. Mas se você usa o brinco e o botton, é muito difícil você ter esta perda. […] E se a gente for ver, algumas identificações com fogo têm muito erro também. Marcas com o número errado, números ao contrário, borra a marcação. Então não é porque marcou a fogo que 100% do rebanho estão identificados sem nenhuma perda”, afirmou.
Macitelli recomendou que os furos para os brincos (dois ou três furos, conforme a demanda) sejam feitos ao nascimento dos bezerros, uma idade em que as sinapses nervosas ainda não estão evoluídas e a cartilagem está mais macia, minimizando a dor dos animais.
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A pesquisadora respondeu dúvida de outro produtor também que perguntou a respeito da marcação a frio com nitrogênio, prática que não ameniza a dor nos animais e também não pode ser usada em bovinos com pelagem clara, uma vez que o manejo consiste em matar os melanócitos, células responsáveis pela produção da melanina, se destacando somente em pelagens mais escuras. A prática também pode ser perigosa ao homem pelo uso do nitrogênio em temperaturas muito frias e também ser mais estressante ao animal, uma vez que o marcador pode ter que ficar até 30 segundos em contato com o bovino para efetividade.
“Repense o modelo do seu negócio porque você pode estar deixando de ganhar dinheiro e estar trazendo uma imagem muito ruim para a cadeia. Você pode estar fazendo ações que não são boas para os animais e a gente tem que pensar neles. Eles são o nosso ganha-pão e nós temos que respeitar estas vidas que nos dão vida. Eu sempre falo para os meus alunos que o contato entre o homem e os bovinos é milenar, mas nossos manejos não precisam ser. A gente pode mudar”, finalizou Macitelli.
Com informações do Giro do Boi