Essas regras mudam, significativamente, o papel dos laticínios na fiscalização e no controle da produção do leite e do gado em campo. INs 76 e 77: burocracia ou necessidade de evolução?
Por Roberta M. Züge, André Luiz Assi e Isabelle Correa Rochebois Campello
Entre questões mundiais político-econômicas e referentes a saúde pública, que afetam diretamente a Segurança Alimentar, o Brasil passa por um período de grandes mudanças em seu serviço de inspeção de alimentos de origem animal, em especial com a publicação do decreto 9.013 de 29 de março de 2017, o novo Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA. Sua aprovação veio junto com uma cascata de atualizações legais em relação aos assuntos referentes. Além disso, no momento, há grande movimentação para maior enfoque nos programas de autocontrole – PACs, pressão pela privatização do serviço de inspeção e criação do selo ARTE.
A cadeia produtiva brasileira de lácteos ainda não figura como importante player no cenário internacional, mesmo com o desenvolvimento notório do setor. A habilitação, em 2019, de 24 laticínios para o comércio com a China gerou uma onda de otimismo, mas sem grande efeito prático, devido à falta de comprovação do cumprimento de requisitos legais por parte dessa cadeia.
Dentro de todo um cenário extremamente complexo veio a publicação das Instruções Normativas 76 e 77 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa. As boas práticas agropecuárias na produção de leite bovino devem assegurar que o leite e os seus derivados sejam seguros e adequados para o uso a que se destinam e, também, que a propriedade continue viável sob a tríade econômica, social e ambiental.
A IN 76 traz novas regras a respeito das características e da qualidade do produto na indústria. Também determina os critérios e procedimentos para a produção, acondicionamento, conservação, transporte, seleção e recepção do leite cru em estabelecimentos registrados no serviço de inspeção oficial. Uma novidade é que a regra, entre vários outros requisitos, determina a necessidade de um monitoramento efetivo no campo. A IN 77 define os critérios para obtenção de leite de qualidade e seguro para o consumidor e que englobam desde a organização da propriedade, suas instalações e equipamentos, até a formação e capacitação dos responsáveis pelas tarefas cotidianas, bem como o controle sistemático de doenças como mastite, brucelose e tuberculose.
Essas regras mudam, significativamente, o papel dos laticínios na fiscalização e no controle da produção do leite e do gado em campo. Na prática, eles se tornaram responsáveis pela qualidade e pela inspeção de toda cadeia de produção. Com controles que possam rastrear os processos e com treinamentos em campo à mão dos produtores, as barreiras de exportação estão cada vez mais perto de serem ultrapassadas. Esse é um grande progresso para o setor. Os principais pontos dessas INs são:
- A exigência de programa de autocontrole em todo o processo, não só da indústria;
- A abordagem de programas sanitários, planos de qualificação dos fornecedores, programas de seleção e capacitação de transportadores, cadastro dos produtores e transportadores e a descrição e implementação de procedimentos de coleta, transvase e higienização de tanques isotérmicos, caminhões, mangueiras e demais utensílios ou equipamentos utilizados na coleta e transporte do leite até a entrada do laticínio;
- Nos leites pasteurizados, sempre que existir a padronização, a porcentagem de gordura deve estar indicada no painel principal do rótulo, próximo à denominação de venda, e em destaque;
- A IN 77 passa a dar as recomendações quanto aos tanques comunitários, como a necessidade de realização de análises antes das misturas do leite oriundo das distintas propriedades;
- Passa a ser obrigatória a existência de médico veterinário que seja responsável pela sanidade dos rebanhos, devendo atuar ao longo do processo, desde orientação à empresa, treinamento periódico dos funcionários, implantação e execução dos programas de autocontrole e notificação de ocorrências às autoridades competentes.
- Mudança nos parâmetros microbiológicos. Para o leite cru refrigerado, a média geométrica trimestral da contagem bacteriana total (CBT) não deverá ultrapassar 300 mil UFC/mL para análises individuais de cada resfriador/produtor, permanecendo o que já era praticado. Porém, com uma novidade: agora IN 77 define a CBT máxima de 900 mil UFC/mL para o leite antes do beneficiamento. No que tange a contagem de células somáticas (CCS), a média geométrica trimestral máxima ficou estabelecida em 500 mil céls/mL. A periodicidade de análises de CBT e CCS foi mantida como mensal;
- Aceite de apenas resfriadores de expansão direta e/ou os resfriadores de placas, sendo que os sistemas de refrigeração precisam ser dimensionados de forma que atinjam 4°C em até 3h após o fim da ordenha;
- As análises de resíduos de antibióticos no leite ficaram mais específicas e detalhadas, com pesquisa de, no mínimo, dois princípios ativos a cada recebimento. Também sob frequência estabelecida pela indústria, devem ocorrer análises para todos os grupos de antimicrobianos para os quais existam métodos de triagem. A frequência deve ser definida previamente, sendo um consenso entre o estabelecimento e os serviços de inspeção;
- As análises oficiais devem ser realizadas em laboratórios da Rede Brasileira de Laboratórios de Qualidade do Leite (RBQL), mas agora devem ser mensais. Deve-se analisar: teor de gordura; teor de proteína total; teor de sólidos não gordurosos; teor de sólidos totais; CCS; contagem padrão em placas; limites físico-químicos e microbiológicos e teor de lactose anidra (que antes não era realizado);
- Desde maio de 2019 há a exigência de contagem de enterobactérias, que não deve ultrapassar 5 UFC/mL;
- O leite deve ser coado antes do armazenamento, artigo que está em consonância com o novo RIISPOA, que já indicava a obrigatoriedade da filtração do leite na propriedade rural.
Quanto aos monitoramentos, o laticínio passou a ter responsabilidade pela produção do seu produto desde o início da cadeia do leite. Antes, a responsabilidade começava a partir da coleta. Agora, a legislação confere aos empreendimentos que coletam o leite o dever técnico de controlar, registrar os processos, coletar evidências, capacitar, elaborar e implantar planos de melhoria.
O laticínio deve fazer um levantamento dos dados em campo anualmente. Esse diagnóstico tem como objetivo acompanhar, ano a ano, a evolução das melhorias implantadas junto aos produtores de leite. Está responsável também por monitorar e acompanhar os registros diários e mensais das propriedades, tais como, o controle da temperatura do leite, o uso de medicamentos e suas carências, o controle de mastite nos rebanhos, o uso de agroquímicos, controle de pragas, qualidade da água, entre outros. Isso significa que o laticínio precisa ter acesso ao controle diário das propriedades para estar em conformidade com as IN 76 e IN 77.
Dentro da IN 77, o Mapa instituiu o Plano de Qualificação de Fornecedores de Leite – PQFL, uma ferramenta de controle com processo contínuo e evolutivo elaborada pela empresa ou cooperativa na qual consta a política do laticínio em relação aos seus fornecedores. No site constam para download os documentos com orientações para elaboração do PQFL, Boas Práticas Agropecuárias – BPA, Lista de Verificação de BPA e Formulário padrão para envio do PQFL. Ainda, o site Milk.Wiki está disponibilizando alguns e-books para apoio à cadeia produtiva. Atualmente estão no ar os livros “IN 76 e 77 – As principais responsabilidades do laticínio no campo”, “IN 76 e 77 – Instruções normativas da produção de leite – Simplificamos as infos pra você” e “9 Dicas essenciais para uma ordenha de qualidade”
Você deve estar se perguntando o porquê de tantas mudanças e aumento nos critérios de qualidade, aparentemente injustificáveis…
Historicamente, notamos que a interface desenvolvimento tecnológico e econômico social se relacionam diretamente, sendo imperativo prover condições e fomento a todos os elos da cadeia produtiva para que o desenvolvimento aconteça. É sabido que nada se modifica positivamente somente pela força da lei e/ou por lobbies setoriais. Países que utilizam mais tecnologia elaboram e fornecem produtos e serviços com mais eficiência e, por consequência, direta ou indiretamente, favorecem as suas sociedades com melhores condições de vida como resultado da conversão de ganhos econômicos em ganhos sociais.
Problemas estruturais, junto com outros fatores componentes do famigerado “Custo Brasil”, causam grandes prejuízos e trazem desafios complexos para a soberania nacional, em especial aos pequenos produtores, responsáveis por aproximadamente 50% da produção nacional. O consumidor final, de forma geral, está distante do produtor primário, em uma realidade em que a infraestrutura básica é deficiente quanto a critérios qualitativos e quantitativos. Junto, o Brasil possui sérios problemas de saneamento básico e transporte apoiado em modal rodoviário de má qualidade, impactando em um produto com maior custo, menor qualidade e maior insegurança. Também, a complexidade dos resultados da cadeia de abastecimento em sistemas de feedback perversos e decisões irracionais, se agravando em uma cadeia produtiva pouco estruturada, altamente suscetível às flutuações econômicas e com poucos recursos para fomento técnico e financeiro.
Um novo estudo do Banco Mundial concluiu que o impacto econômico de alimentos não seguros custa aos países de economias de baixa e média renda aproximadamente US$ 110 bilhões em perda de produtividade e despesas médicas a cada ano. Ainda cita que uma grande parte desses custos poderia ser evitado por meio da adoção de medidas preventivas, focando em qualidade dispensadas aos alimentos da fazenda à mesa. Gerenciar melhor a segurança de alimentos também contribuiria significativamente para atingir vários objetivos de desenvolvimento sustentável, especialmente as relacionadas com a pobreza, fome e bem-estar.
Nas Américas, estima-se que 77 milhões de pessoas sofram um episódio de doenças transmitidas por alimentos a cada ano, metade delas crianças com menos de 5 anos de idade. O Brasil ocupa a 112ª colocação dentre 200 países no ranking internacional de saneamento com 36 milhões de brasileiros ainda não dispondo de água tratada, 48,1% da população com esgoto coletado e menos de 40% desse esgoto coletado sendo tratado (região norte – menos de 10%). Somente sete capitais brasileiras possuem mais de 80% dos domicílios conectados à rede de coleta de dejetos: as maiores cidades do país (São Paulo e Rio de Janeiro) – 93%, enquanto Belém (7,7%), Macapá (5,5%), Porto Velho, Manaus (inferiores à 5%), o que culmina em 60% das internações hospitalares de crianças serem relacionadas à falta de saneamento, levando a uma realidade onde 7 crianças morrem por dia pela falta de saneamento (Matsuda, 2015).
Junto, o comportamento do consumidor está mudando, tendo como grande influenciador a agilidade de trânsito das informações (e desinformações), entrando na pauta do processo decisório de compra questões pouco contempladas anteriormente, como sustentabilidade da empresa, preocupação com o bem-estar animal, presença de resíduos de agroquímicos, contaminação dos produtos agropecuários por microrganismos e à alteração da composição genética do produto por meio da introdução de genes de outras espécies (Züge et al., 2003).
Falando em competitividade as indústrias de forma geral caminham para a quarta revolução industrial, ou indústria 4.0, que visa a integração total em busca de otimização da produção e produtividade, com todos os pontos do processo produtivo conversando e trocando informações de forma ágil por meio da fusão dos mundos físico, digital e biológico. Abaixo estão os nove pilares da indústria 4.0.
O agronegócio não está de fora e se movimenta para se adequar, inclusive a cadeia produtiva do leite. Um bom exemplo é a Embrapa que, em parceria com outras instituições, fomenta o Ideas for Milk desde 2016 para mitigar soluções reunindo a iniciativa privada, a academia, a pesquisa agropecuária e o setor produtivo.
Esse novo cenário denota uma nova interface – o desafio da baixa qualificação do produtor em detrimento à natividade das novas gerações com as novas tecnologias. O que parece um grande desafio pode, na verdade, representar uma grande vantagem para a retenção dos mais jovens no setor produtivo e na área.
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Não existem milagres, mas sim a disposição e busca pela profissionalização de um setor em busca de produtividade, competitividade, sustentabilidade. Por fim, deve-se conferir qualidade de vida a todos os inseridos na cadeia produtiva – do pequeno produtor ao consumidor que adquire um produto de qualidade do ponto de vista de identidade e inocuidade. Não é somente uma questão de “canetada”, “papelada”, “burocracia”, mas sim uma demanda por modernização, sustentabilidade, Segurança de Alimentos e soberania nacional.
O universo trabalha buscando o equilíbrio e eficiência em todos os quesitos. Não existe uma rocha, um grão de areia, um átomo de carbono que está em um lugar que não deveria estar lá ou não está em equilíbrio. Cada alimento, cada produto de origem animal e vegetal possuem energia vital. O leite é especial, pois foi projetado pela mãe natureza para manutenção da vida das espécies mamíferas. Antes de tudo, é um produto nobre por vocação e excelência. Temos que respeitar o leite, assim como os demais alimentos.
Estamos diante de uma bifurcação e devemos, juntos, como cadeia produtiva e como sociedade, escolher e pavimentar qual o caminho que desejamos seguir: vamos continuar a brincar de leite direto da vaca na canequinha, queijo furadinho, defender ideias sem o menor senso técnico e científico por interesses próprios… ou brincar que nem “gente grande”, de forma correta, responsável, sustentável, assumindo o papel e responsabilidade enquanto promotores de saúde pública e qualidade de vida, do ordenhador ao ponto de venda.
O Brasil não é (e cada vez menos deve ser) para amadores…
Fonte: Milk Point