Ele diz que as forças russas agora ocupam 80% das dezenas de milhares de hectares que ele cultiva e as acusa de roubar grãos em escala industrial. Confira as imagens!
A algumas dezenas de quilômetros da linha de frente da guerra, o agricultor ucraniano Dmytro descreveu como o negócio que ele manteve por 25 anos foi perdido em quatro meses de ocupação russa. A BBC conversou com agricultores e analisou imagens de satélite e dados de remessa para rastrear para onde o grão está indo. Confira abaixo o que se sabe até o momento!
A BBC tentou entrar em contato com mais de 200 agricultores cujas terras estão agora em território ocupado pela Rússia. Dmytro (não estamos usando seu nome verdadeiro para protegê-lo) foi um dos poucos dispostos a falar com a reportagem.
“Eles roubaram nossos grãos. Destruíram nossas instalações, destruíram nosso equipamento”, conta.
Ele diz que as forças russas agora ocupam 80% das dezenas de milhares de hectares que ele cultiva e as acusa de roubar grãos em escala industrial. Uma câmera de segurança de uma das áreas da empresa capturou o momento em que os russos chegaram. Desfocamos imagens dos arredores para proteger as identidades dos donos da fazenda.
Na mesma gravação, mais tarde, é possível ver um soldado olhando para uma câmera de segurança e atirando nela. Mas ele erra. Caminhões de grãos foram roubados e Dmytro diz que alguns deles tinham rastreadores GPS instalados. Conseguimos analisar esses dados para descobrir que eles foram para o sul, na Crimeia, que a Rússia anexou em 2014, e depois para a Rússia.
A partir dos dados do GPS, ambos os caminhões pararam perto de uma instalação de armazenamento — identificada como um local para descarregar e armazenar grãos — na cidade de Oktyabrske, na Crimeia. Em uma imagem de satélite de 14 de junho deste ano, pode-se ver uma fila de caminhões na estrada ao lado do local.
Pode-se ver que a instalação de armazenamento fica ao lado de uma linha férrea, que pode ser usada para transportar grãos para a Rússia ou para portos no sul da Crimeia. A parte superior do local de armazenamento também parece ter o símbolo Z — o emblema da invasão da Rússia — no telhado.
Filas na fronteira
É muito difícil rastrear carregamentos individuais de grãos roubados, mas há muitas evidências de que muitos deles vão primeiro para a Crimeia. Há imagens de satélite em dois pontos de entrada principais — em Chonhar e Armiansk — nos quais é possível ver vários veículos, que podem ser usados para transportar grãos e outros produtos.
Uma imagem do ponto de entrada de Chonhar, registrada em 17 de junho, mostra uma fila de caminhões com mais de 5 km de comprimento. Esse nível de tráfego rodoviário na Crimeia é incomum, pois a Ucrânia não tem acesso à área desde que ela foi anexada pela Rússia em 2014, e exporta grãos e outros produtos de outros lugares.
Pode ser possível explicar parte do volume de tráfego como caminhões vazios retornando das áreas ocupadas, entregando suprimentos às tropas russas. Mas uma dedução óbvia é que muitos dos veículos estão transportando grãos — ou outros produtos como sementes de girassol — retirados de agricultores ucranianos.
Imagens de satélite da cidade de Dzhankoi, na Crimeia, mostram caminhões aguardando em uma estrada ao lado de uma instalação de armazenamento de grãos e perto da estação de trem.
As imagens mostram trens de carga, com vagões do tipo usado para transportar grãos e outros produtos, na estação ao lado do armazém. Os trens de Dzhankoi estão conectados aos portos de Sebastopol e Kerch, onde os produtos podem ser transportados para a Rússia ou para o exterior.
Para onde os grãos ucranianos são levados após a Crimeia?
“Eles primeiro levam grãos para a Crimeia anexada, onde os transportam para (os postos de) Kerch ou Sebastopol, depois carregam grãos ucranianos em navios russos e vão para o Estreito de Kerch”, diz Andrii Klymenko, especialista do Instituto para Estudos Estratégicos do Mar Negro em Kiev, que monitora regularmente os movimentos de navios ao redor da Crimeia.
“Lá, no estreito de Kerch (entre a Crimeia e a Rússia), eles transferem grãos ucranianos de pequenos navios para graneleiros, onde são misturados com grãos da Rússia — ou, em alguns casos, navegam para essa área apenas para parecer que eles estão carregando grãos russos.”
Ele acrescenta que o conteúdo é exportado com certificados russos, ou seja, declarando que se trata de grão russo. Os navios muitas vezes se dirigem para a Síria ou a Turquia.
O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, disse que investigou as alegações sobre o envio de grãos ucranianos para a Turquia e até agora não encontrou nenhuma evidência. “Vimos nos registros que o porto de partida dos navios e a origem das mercadorias é a Rússia”, disse ele.
Volume incomum de atividade em Sebastopol
Imagens de satélite do terminal de grãos de Avlita, no porto de Sebastopol, no oeste da Crimeia, mostram um alto nível de atividade ao longo de junho, com material amarelo consistente com a cor de grãos sendo carregado em uma série de navios.
Analisamos imagens do mesmo terminal em junho nos últimos anos, e essa quantidade de atividade parece ser alta — e incomum. Alguns especialistas com quem conversamos disseram que essa atividade só pode ser explicada pelo transporte de grãos ucranianos.
“A Crimeia não produz muitos grãos para exportação”, diz Mariia Bogonos, especialista em política agrícola da Escola de Economia de Kyiv. Também não faria sentido geográfico para a Rússia usar Sebastopol para exportar seus próprios grãos.
Mas Mike Lee, um especialista em agricultura da consultoria Green Square Agro que trabalhou na Ucrânia e na Rússia, diz que alguns grãos vindos da Crimeia podem ser parte de uma reserva da colheita do ano passado, mantida em estoque por causa da guerra.
“A Crimeia está sob controle russo, mas as cadeias de suprimentos também foram afetadas lá.”
Os navios que desligam seus rastreadores
Da Crimeia, as autoridades dos Estados Unidos e da Ucrânia e reportagens na imprensa identificaram nove navios que teriam transportado grãos ucranianos roubados para o exterior.
Usando dados da Lloyd’s List Intelligence, serviço especializado de informações comerciais dedicado à comunidade marítima global, a BBC rastreou esses navios em viagens entre a Crimeia e portos na Turquia e na Síria desde abril.
A Lloyd’s List Intelligence diz que os navios usaram o que especialistas marítimos descreveriam como práticas de navegação “enganosas” — desligando seus rastreadores a bordo ao entrar no Mar Negro ou se movendo pelo Estreito de Kerch, perto da Crimeia.
Quando seus rastreadores voltam a funcionar, os navios estão navegando para o sul e muitos relatam uma profundidade menor na água, sugerindo que fizeram carregamento de carga durante esse apagão.
A BBC mapeou as viagens de três navios: o Matros Pozynich e o Sormovskiy 48, de propriedade de duas empresas na Rússia, e o Finikia, de propriedade da Autoridade Marítima Geral da Síria. Tentamos entrar em contato com os proprietários registrados na Rússia desses navios para perguntar sobre as viagens, mas não obtivemos resposta. Não conseguimos falar com os proprietários sírios.
Apesar das lacunas em seus históricos de rastreamento, imagens de satélite revelaram onde alguns dos navios estiveram.
Fotos de Maxar mostram o Matros Pozynich em Sebastopol, na Crimeia, em meados de maio. Durante esta viagem, ele navegou para o Estreito de Kerch, teve um apagão do transponder por cinco dias e depois reapareceu centenas de quilômetros ao sul no Mar Negro. Mais tarde, foi fotografado no porto sírio de Latakia — mas teve seu sistema de rastreamento desligado.
De acordo com a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS) da ONU, os navios devem ter seus rastreadores sempre ligados, a menos que isso represente uma ameaça à sua segurança e proteção — da pirataria, por exemplo. Michelle Wiese Bockmann, editora de mercado da Lloyd’s List Intelligence, acredita que não há justificativa para desligar os rastreadores perto da Crimeia ou da costa síria.
“Esta prática claramente não está ligada a riscos de pirataria”, diz Bockmann. “Outros navios têm seus transponders ligados, então por que não têm?”
Táticas da Rússia
A BBC também obteve documentos elaborados pelas autoridades de ocupação russas que listam as fazendas para onde os grãos são transferidos.
Uma investigação separada dos serviços de notícias russo e ucraniano da BBC mostrou que, em alguns casos, os russos estão forçando os agricultores ucranianos a vender grãos a preços bem abaixo das taxas de mercado e assinar documentos para provar que foram comprados “legalmente”.
Embora os primeiros relatos fossem tipicamente de roubo direto pelas forças russas, os agricultores sugerem que houve uma mudança de tática, pois os russos percebem que, se não pagarem nada, as colheitas futuras podem ser sabotadas. Os agricultores dizem que têm que aceitar os preços baixos, pois não têm alternativa e precisam comprar combustível e pagar trabalhadores.
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Emilie Pottle, advogada de direito internacional, disse à BBC que essas ações podem violar a Convenção de Genebra e as regras do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Entramos em contato com as autoridades russas para perguntar sobre essas alegações, mas ainda não recebemos uma resposta. No entanto, algumas autoridades em áreas controladas pela Rússia falaram abertamente sobre a retirada de grãos ucranianos das áreas que agora controlam.
Reportagem adicional da Ucrânia por Hanna Tsyba, Sira Thierij e Hanna Chornous Reportagem adicional de Londres por Daniele Palumbo, Josh Cheetham, Jake Horton, Erwan Rivault e Andrei Zakharov
‘Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61952335‘