Gir do Brasil: A saga de uma raça

A história do Gir do Brasil é cheia de aventuras, inclusive de um quase naufrágio; saga da raça inicia-se na década de 30 do século passado

Atualmente existem leilões e feiras de gado de raça de alta genética, animais cujos preços são tidos, muitas vezes, como exorbitantes. Alta pressão de seleção, inseminação artificial, transferência de embriões e, mais recentemente clonagem de animais. Resumidamente a pecuária vive uma pressão tanto da parte que envolve tecnologia quanto marketing, mas nem sempre foi assim, principalmente nas décadas de 30 a 50 com a “Febre GIR” no Brasil.

Curral lotado de Gir Indayá - Dores do Indaiá-MG / Foto: José Peres
Curral lotado de Gir Indayá – Dores do Indaiá-MG / Foto: José Peres

Brasil ganha o primeiro exemplar GIR

A saga da raça GIR no Brasil começou em 1930 quando o pecuarista Ravizio Lemos e sua esposa dona Mariana retornaram da Índia com alguns exemplares da raça GIR dentre eles várias matrizes prenhes e alguns tourinhos todos alojados no porão do navio e como não poderia deixar de ser, já que era uma viagem longa, com estoque de alimentos e água para os animais.

Porém, o que ninguém podia prever, é que depois de muitos dias em alto mar, se depararam com uma terrível tormenta numa noite com ondas gigantes que ameaçavam a embarcação. Diante de tal situação o capitão do navio convocou toda tripulação e falou que era indispensável esvaziar a embarcação para não afundarem, ou seja, todos os animais juntamente com seus alimentos e água deveriam ser atirados ao mar naquele momento.

Vendo toda aquela movimentação, dona Mariana correu aos porões e, para sua alegria, verificou que uma bela novilha que havia criado um lindo bezerrinho poucas horas antes, ainda estava lá. Não pensou duas vezes, falou com o marido e correram até o capitão e pediram para ele permitir apenas manter a vaca com o bezerrinho recém parido na embarcação, afinal, que diferença eles poderiam fazer quanto ao peso do navio? A argumentação deu certo e assim o casal conseguiu trazer para o Brasil a novilha juntamente com seu filho batizado de Gaiolão, todos chegaram sãos e salvos ao porto de Santos no início do ano de 1931.

Segundo o médico veterinário Paulo Lot Calixto Lemos, foi a partir de 1936, foi após ser adquirido pelo senhor Nilo Silva Lemos, profundo conhecedor da raça GIR, e pelo seu cunhado, Dr. Julio B. Costa, casado com dona Honorina Lemos, advogado por profissão e fazendeiro por vocação, que passou a ser considerado um dos melhores raçadores Gir de seu tempo, que foi a áurea dessa história.

Em 1938, ano do acontecimento da grande exposição nacional da raça GIR, concentrou todos os grandes “Zebuzeiros” do país em Uberaba, Minas Gerais, a movimentação era intensa, o disse-me-disse e as apostas corriam soltas. Chegou o grande dia: dentre todos os baluartes, ia sair naquele dia o Grande Campeão da Raça Gir, fruto do primeiro julgamento realmente “oficial” da raça. E, após todas preliminares e protocolos, o touro Gaiolão foi proclamado o grande campeão da raça GIR de todos os tempos.

Gaiolão foi um dos fundadores do rebanho paulista de gado gir, importado por Ravísio Lemos
Touro Gaiolão

Segundo Lemos, a algazarra era ensurdecedora, gritos e mais gritos de vivas, foguetório para todo lado. Gaiolão já estava sendo preparado para o grande desfile em carro aberto quando um dos juízes veio ao microfone comunicar que o julgamento estava cancelado por ordem judicial já que – como se trata de uma feira estritamente nacional, o julgamento foi considerado ilegal, pois o touro Gaiolão não nasceu no Brasil. O que foi como um balde de água fria na cabeça de todos. Porém, Dr. Júlio Costa, pessoa ativa e de muita iniciativa, “incorporou” instantaneamente seu lado advogado e tomou logo a frente do problema. Localizou o juiz que determinou o cancelamento e datilografou ali mesmo um mandato de segurança alegando que Gaiolão era sim brasileiro! Pois apesar de haver nascido no mar, já se encontrava em águas brasileiras e em um navio de bandeira brasileira! Portanto em território nacional. Diante desta argumentação o juiz se viu obrigado a acatar o mandato e validar o julgamento. Afinal quem poderia afirmar o contrário?

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Fazendas do BASA / Foto: José Peres

Venda dos bezerros antes de nascer

Já no ano de 1942 o Gaiolão não mais existia, porém deixou como descendentes 8 touros e 12 fêmeas, destacando entre eles os touros Romano, Tamoyo e Guilherme II, além da vaca Manchinha, prole esta que, na ocasião, ainda pertencia ao Doutor Júlio Costa, que não era mais sócio de seu cunhado, Nilo Lemos. E, por serem filhos de Gaiolão, a cotação de sua descendência continuava em alta. Portanto, o assédio para comprá-la ainda era enorme, mas Dr. Júlio, como bom comerciante que era, preferia sempre no lugar de vendê-la, vender a sua produção e “manter a galinha dos ovos de ouro”, ele dizia. Ele comercializava a prole antes mesmo desta nascer, o que era chamado vender a “barrigada” da vacada, ou seja, vender antecipadamente os bezerros que iriam nascer no próximo ano.

Abedé Triunfo Cal é neto do touro Triunfo
Abedé Triunfo Cal é neto do touro Triunfo

Triunfo: o touro mais caro do mundo

Para se ter uma noção dos valores, no ano de 1942 a “barrigada” estava vendida aos produtores Bruno Silveira e Nenê Costa, ambos de Barretos, São Paulo, cada bezerro por nascer fora vendido a $8,00 contos de Réis, enquanto que um boi gordo valia na época cerca $0,6 contos de Réis.

Um desses bezerros vendidos antes de nascer foi o Triunfo. Admirado por todos logo ao nascer, o bezerro Triunfo estava sendo cotado por $50,00 $100,00 até que num determinado momento o Sr. Brasiliano Barbosa, respeitado boiadeiro da noroeste de São Paulo, após alguns minutos escutando e analisando o bezerro ele disse que o bezerro seria dele por $600,00 contos de réis, valor que ele havia vendido mil bois a um frigorífico. Assim, o bezerro Triunfo, futuro grande reprodutor da raça Gir, neto de Gaiolão tanto pelo lado materno como paterno, foi vendido pela primeira vez e ficou para sempre conhecido como o touro mais caro do mundo.

Após dois anos, Triunfo já era um tourinho famoso e muito bem cotado, pronto para iniciar sua vida reprodutiva e a colheita dos primeiros frutos de seu investimento. Em plena segunda guerra mundial e, mais “importante”, em plena exposição nacional de Uberaba. Políticos de todos os calibres e de todas tendências fanfarronam junto a grandes pecuaristas e zebuzeiros pelo recinto do parque Fernando Costa. Todos à espera do digníssimo Presidente da República, excelentíssimo senhor Getúlio Vargas, para ouvir o seu esperado pronunciamento e assistir a abertura oficial da Expozebu-1944.

Quando Getúlio chega, com toda sua comitiva de praxe e seu inseparável sorriso nos lábios. Do palanque oficial discursa a respeito da tão malfadada guerra, fala da importância da agropecuária para sanear a fome no mundo, especialmente naqueles tempos sombrios de guerra, E, terminado seu discurso, deu abertura oficial aos trabalhos da Expozebu. Quando então, lhe foi apresentado o grande campeão da raça Gir do ano anterior, seu proprietário indagou-lhe se saberia dizer qual era o seu valor. Getúlio coçou a garganta e respondeu ao microfone, em alto e bom som: Vale quanto pesa.

A partir desta pequena frase, iniciou-se a controvertida derrocada da raça Gir e suas lastimáveis consequências. A “quebradeira” foi geral, a “Chiadeira”, idem, porém, aqueles que estavam com o capital totalmente investido na raça, não tiveram salvação.

Segundo Lemos , o senhor Brasiliano Barbosa foi um dos muitos que estavam nesta situação. Seu capital estava praticamente todo investido em novilhas, matrizes e touros da raça Gir. E um destes era o tourinho Triunfo. Assim, em 1945, sabendo da origem daquele animal, entrou em contato novamente com o doutor Júlio Costa, oferecendo o tourinho que sua esposa tanto havia desejado:

– Doutor Julio. O Triunfo está à venda, sei que você e dona Honorina reconhecem o valor deste animal. Portanto, o senhor é o primeiro que procuro. Paguei por ele $600,00 contos de réis há três anos e, por $599,00 meu sogro fica com ele. Faz isso porque é rico, mas não reconhece o real valor deste grande raçador. Por este motivo que estou lhe oferecendo e insistindo para que fique com ele. Assim, sei que Triunfo ficará em boas mãos.

Foi assim que a alma do comerciante falou mais alto que o juízo do advogado. Num relance Dr. Julinho visualizou a grande oportunidade que batia à sua porta. Conhecia como poucos a “paixão” que esta obstinada raça provocava no coração de centenas, talvez milhares de pequenos, médios e grandes pecuaristas. Sabia que, apesar da derrocada provocada por Getúlio Vargas, a raça Gir ainda era única, a matriz excelência para qualquer tipo de cruzamento ou melhoramento genético que se desejasse obter e que, com um trabalho de “marketing” adequado, Triunfo poderia ainda se pagar dezenas de vezes. Assim prontamente respondeu:

– Brasiliano, o senhor tocou meu coração “Girista”. Há três anos atrás Triunfo poderia ter sido meu, hoje faço questão que ele volte para sua antiga casa pelos mesmos $600,00 contos que ele se foi…

Assim, o agora grande Raçador Triunfo, neto de Gaiolão e filho de Manchinha e Guilherme II, foi vendido pela segunda e última vez.

Numa época que boi andar de caminhão era mais difícil que gente andar de avião, foi despachado um “mazaropi” para a cidade de Paulo de Faria buscar o touro Triunfo. Doutor Julinho e sua inseparável dona Honorina listavam, articulavam e comandavam sem cessar a festança que teria banda musical da polícia militar para recepcionar o touro Triunfo, missa com bispo e tudo, políticos, deputados e senadores, os pecuaristas de maior expressão nacional, todos os médios e pequenos fazendeiros da alta mogiana, do triângulo e do sul de Minas Gerais, e convidados em geral. Enfim seria uma festa para 4.500 pessoas, regada a muito chope Antarctica e carne de 18 novilhas gordas, que aconteceria na fazenda Santa Gema em Franca, São Paulo.

Assim, exatamente o que era esperado aconteceu. A festa foi um sucesso total, que ao seu término já haviam sido comercializadas, só em “coberturas”, quase duas vezes o valor pago por Triunfo. E o touro Triunfo deu ainda muitas alegrias ao casal, Julio e Honorina até morrer em 1955, aos 12 anos de idade, fulminado por um raio juntamente com sua mãe Manchinha e mais uma dezena de matrizes.

Atualmente, as cabeças de Gaiolão, de sua filha Manchinha e de seu neto Triunfo se encontram embalsamadas, expostas em um cômodo todo especial da casa de dona Honorina Lemos, na cidade de Franca.

“Se o Gir não tivesse melhorado o gado crioulo nacional, entre as décadas de 30 e 50, como seria possível às superespecializadas raças européias tirar proveito dos mais diversos cruzamentos? “Sem o Gir não haveria o brilhantismo que vemos hoje na moderna pecuária e seus cruzamentos”

Texto adaptado do Méd. Veterinário Paulo Lot Calixto Lemos

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