Conheça a história de como o Brasil, transformou animal sagrado de marajá indiano em revolução genética e mercado bilionário; Esse é o famoso Gir!
Entre goles de café, o espanhol Celso Garcia Cid examinava a correspondência na espaçosa sede de sua fazenda no interior do Paraná quando a foto de um bezerro o hipnotizou. Ele havia sido fotografado pelo vaqueiro Ildefonso dos Santos, enviado por Cid à Índia em 1958 para romper o domínio de criadores do Triângulo Mineiro na pecuária brasileira.
“Tudo que se diga desse animal não poderá revelar o que seja – é um colosso”, descreveu o vaqueiro. O touro pertencia à raça Gir, famosa pelos chifres para baixo e pela pelagem branco-avermelhada. Chamava-se Krishna, como um dos deuses mais populares do Hinduísmo, religião majoritária na Índia.
“Compre urgente esse boi!”, ordenou Cid em telegrama ao auxiliar. Trazido ao Brasil em 1960, o touro impulsionou uma revolução genética que fez do Gir uma das raças mais valorizadas no milionário mercado de embriões bovinos e gerou uma linhagem mestiça hoje responsável por 80% da produção de leite nacional.
O feito chamou a atenção até do governo indiano – que, agora, busca o Brasil para reintroduzir a raça em sua terra natal, onde ela quase desapareceu após cruzamentos malsucedidos e jamais teve a produtividade alcançada em fazendas brasileiras.
Neto de Cid e um dos herdeiros de sua fazenda, o advogado Guilherme Sachetim diz que a compra de Krishna “foi um divisor de águas na pecuária brasileira”.
Ele afirma que o touro “refrescou o sangue” do gado leiteiro nacional em um momento em que a consanguinidade limitava a produtividade dos rebanhos. A chegada de Krishna coincidiu com o avanço das técnicas de melhoramento genético, que disseminaram pelo Brasil o DNA de touros e vacas de alto desempenho.
Hoje, segundo Sachetim, a linhagem de Krishna está presente em 80% do rebanho Gir brasileiro e se espalhou por quase todos os países das Américas. “Milhões de pessoas foram beneficiadas com essa importação”, afirma.
No tempo dos marajás
A saga do touro liga o Brasil à era dos marajás na Índia, quando poderosos locais governavam microestados e desenvolveram linhagens que deram origem às principais raças de gado indiano, também chamado de zebu.
Em Bhavnagar, no oeste do país, a família governante notabilizara-se pela criação de bois e vacas mais preparados para resistir à maior ameaça local: ataques de leões. Graças aos chifres voltados para trás e para baixo, os pescoços dos animais ficavam protegidos das mordidas dos predadores.
A raça, selecionada ao longo de dois mil anos, foi batizada de Gir – nome de uma floresta local.
Quando Celso Garcia Cid mandou seu vaqueiro à Índia, em 1958, a era dos marajás já havia se encerrado. Após a independência do país, em 1947, autoridades passaram a confiscar os bens dos antigos governantes.
Mas o marajá de Bhavnagar, H. H. Shri Krishnakumarsinghji, conseguiu preservar parte da linhagem desenvolvida pela família, e que teve todos os cruzamentos registrados em livros de anotações nos últimos três séculos.
Uma das joias do rebanho era o touro Krishna.
Em O Tempo de Seo Celso, biografia do fazendeiro, morto em 1972, o jornalista Domingos Pellegrini narra a negociação para trazer o animal ao Brasil.
Após o patrão ordenar a compra do touro, Ildefonso dos Santos telefonou para o palácio do marajá. Por sorte, o secretário do indiano falava português – possivelmente aprendido em Goa, naquela altura ainda uma colônia portuguesa na Índia.
O secretário disse que Krishna já havia sido negociado e que o resto do rebanho não estava à venda. Mas o marajá, que acompanhava a conversa, ficou curioso com o interesse de um comprador vindo de terras tão distantes e convidou Ildefonso ao palácio.
Os dois se encontraram, e o vaqueiro convenceu o marajá a lhe vender Krishna e outras vacas – que se uniram às dezenas de cabeças que ele já havia adquirido de outros criadores.
Mais de um ano depois, Ildefonso embarcava no porto de Madras com toda a boiada rumo ao mar Vermelho. O navio Cora atracou na Arábia Saudita, cruzou o Canal de Suez e passou ao Mediterrâneo.
Três tempestades e 44 dias depois da partida, chegou à Guiana Francesa. Antes de alcançar o destino final, o rebanho teve de passar por uma quarentena na Ilha das Cobras, no litoral do Paraná, o momento mais penoso da jornada.
“Na ilha morreram uma vaca, caída nas rochas da beira-mar, e outra que caiu no mar e se afogou; mais cinco bezerros intoxicados com feijão moído dado como alimento, nos dias em que o capim mal dava para os animais adultos. Outra bezerra Nelore morreu enforcada na própria corda; mais seis bezerros por falta de leite; um touro Gir atirado sobre as pedras na maré baixa, em briga com outro”, relata Pellegrini na biografia de Cid.
Dos 119 animais que deixaram a Índia, 103 chegaram à costa do Paraná, dos quais sete nascidos durante a viagem.
JK e Jango
Enquanto a epopeia se desenrolava, Cid batalhava para que o governo federal autorizasse o desembarque dos bichos. Na época, o Ministério da Agricultura exercia um forte controle sobre a importação de gado. O rigor atendia ao lobby de pecuaristas mineiros, que dominavam o setor após importar levas de zebu um século antes.
Ciente da viagem patrocinada por Cid, a Confederação Rural Brasileira enviou uma carta ao ministério defendendo que os 103 animais fossem sacrificados para não expor “os rebanhos do país a gravíssimas e irremediáveis infecções”.
Para pedir a liberação da carga, Cid se reuniu com o presidente Juscelino Kubitschek e, depois, com seu sucessor, João Goulart. Oito meses após chegar à Ilha das Cobras, quando a viagem toda completava quase dois anos, a boiada finalmente desembarcou.
Solto na fazenda Cachoeira, em Sertanópolis (PR), Krishna logo engordou. Até que, um ano depois, um peão chegou esbaforido à sede da propriedade: “O boi caiu, parece que tá morrendo!”.
Cid ordenou que, assim que morresse, o animal fosse coberto de gelo. No dia seguinte, levou um taxidermista à fazenda para embalsamá-lo. Queria poder olhar o touro predileto até seus últimos dias.
A carcaça de Krishna foi posta num sarcófago de vidro na sede da fazenda, onde se encontra até hoje. Entre as patas do bicho, Cid deixou uma placa: “Quer conhecer Gir? Observe-me!”
Após embalsamá-lo, o pecuarista passou a guardar a cabeça de cada animal morto. As paredes da fazenda se encheram de crânios com longos chifres e fotografias dos touros e vacas genearcas, como um templo de adoração bovina.
Causa mortis
Jamais a causa da morte de Krishna foi elucidada. Peões relataram que, horas antes de desabar, Krishna brigou com um touro mais jovem.
Neto de Cid, Guilherme Sachetim conta que uma autopsia revelou que as veias do coração do animal estavam dilatadas. “Ele pode ter ficado nervoso durante a briga, a pressão subiu, e aí sofreu uma espécie de aneurisma”, especula.
Na curta estadia no Brasil, Krishna deixou um único herdeiro – fruto de um cruzamento com a vaca Sakina, também comprada do marajá de Bhavnagar.
Coube ao jovem touro Krishna-Sakina, apelidado pela família de Krishninha, a tarefa de espalhar o DNA do pai Brasil afora.
Quebra do monopólio
Gerente executivo do Museu do Zebu, em Uberaba (MG), o historiador Thiago Riccioppo diz que a afirmação da família de Cid de que 80% dos bois e vacas Gir brasileiros têm sangue do touro Krishna é provavelmente correta.
Ele afirma ainda que os esforços do fazendeiro para romper o monopólio mineiro abriram o caminho para “as mais significativas importações de zebu da Índia”.
O Brasil abrigava zebuínos desde o fim do século 19, quando barões do café fluminense trouxeram as primeiras cabeças. Mais fortes que as raças europeias, presentes no país desde o início da colonização portuguesa, os bois indianos eram empregados para arrastar máquinas nas fazendas ou exibidos como animais exóticos em zoológicos particulares.
No início do século 20, pecuaristas do Triângulo Mineiro criaram uma associação para registrar a genealogia dos zebus importados e combater a oposição de fazendeiros paulistas, para quem os bois indianos eram animais selvagens e com carne ruim.
Com a retomada das importações, a partir dos anos 1960, acelerou-se a diferenciação das raças zebuínas, à medida que os criadores selecionavam animais para a produção de carne ou leite.
O gado Nelore se tornou o carro-chefe da pecuária de corte. Já o Gir foi se especializando na atividade leiteira, pois era considerado mais dócil que as demais raças indianas, característica essencial para a ordenha.
Na década de 1980, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) impulsionou o processo ao se associar a criadores de Gir que produziam leite.
Pesquisadores montaram um grande banco de dados com informações sobre a lactação de cada vaca. O desempenho dos touros era medido por meio de suas filhas: quando produziam muito leite, garantiam boas notas ao pai.
O progresso de técnicas de inseminação artificial e de fertilização in vitro permitiu que vacas e touros Gir com excelente genética, como Krishninha, gerassem milhares de descendentes ao longo da vida e se tornassem muito valorizados no mercado de embriões bovinos.
Os mais destacados desses animais, vendidos em leilões por cifras que podem ultrapassar os R$ 50 mil, têm na vida a única função de doar sêmen e óvulos para a produção de embriões – que costumam ser gestados por vacas de segunda linha, como barrigas de aluguel.
Especialista em seleção genética de gado leiteiro, o médico veterinário Luiz Fernando Feres diz que, durante a lactação, uma boa vaca Gir brasileira é capaz de produzir cerca de 20 litros de leite por dia – dez vezes mais que as primeiras a desembarcar no país, há mais de um século.
Graças ao trabalho nos laboratórios nos anos 1980 e 1990, a produtividade do gado Gir deu um grande salto, mas ainda estava aquém da obtida pela raça Holandesa. Vacas dessa linhagem europeia podem produzir o dobro de leite e ser ordenhadas mesmo longe das crias.
Já nas raças indianas os bezerros precisam ficar junto das vacas, caso contrário o leite seca (criadores contornam a limitação amarrando o filhote à pata da mãe durante a ordenha).
Por outro lado, as vacas Gir ganham de lavada das holandesas em longevidade e resistência, pois estão adaptadas ao calor e a doenças comuns nos trópicos.
O pulo do gato ocorreu quando as duas raças foram misturadas. O cruzamento deu origem ao gado Girolando – hoje responsável por cerca de 80% do leite produzido no Brasil, segundo a Embrapa.
Pesquisador da instituição, Marcos da Silva diz que o melhoramento genético do gado Gir e a criação do Girolando fizeram a produção leiteira no país quadriplicar nos últimos 20 anos.
Interesse indiano
Nos últimos anos, a Embrapa foi procurada por autoridades indianas interessadas em importar vacas e touros Gir brasileiros. Enquanto evoluía no Brasil, a raça foi minguando no país natal, misturada com outros tipos de gado sem que houvesse avanços relevantes em produtividade.
E na Índia, país em que parte da população é vegetariana, o leite de vaca tem papel crucial como fonte de proteína.
Sagrados para o Hinduísmo, bois e vacas não podem ser abatidos para o consumo da carne na Índia. No Estado de Guajarat, terra natal do Gir, a pena por matar uma vaca pode chegar à prisão perpétua.
Neto de Celso Garcia Cid, o pecuarista Guilherme Sachetim diz que a fazenda que importou o touro Krishna sempre respeitou as tradições indianas.
“Nossas vacas aqui morrem de velhice, de artrose ou por inanição, quando não conseguem mais comer.”
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Sachetim conta que, após negociar parte do rebanho com Cid, o marajá de Bhavnagar veio ao Brasil para ver como os touros e vacas estavam sendo tratados.
Segundo o pecuarista, o indiano ficou tão impressionado que, antes de morrer, em 1965, doou todas as vacas Gir para o fazendeiro. A família emoldurou a carta em que o marajá expressava o desejo, mas, por causa de restrições sanitárias, jamais conseguiu trazer os animais.
“O marajá viu que aqui os touros e as vacas recebiam tratamento de verdadeiros reis, mães e rainhas. Tinham pasto à vontade, sombra e água fresca – o que, cá entre nós, nem sempre acontece lá na Índia.”
Fonte: BBC News