Devemos aposentar a prática marcação a fogo na pecuária brasileira?

A tradição secular de marcação de bovinos a fogo deve estar com dias contados dentro das fazendas de pecuária do Brasil. Quais as opções já foram apresentadas para que se deixe essa prática de lado?

Neste início de ano Agro de São Paulo saiu na frente e marca a fogo em bovinos deixou de ser obrigatória. O governo do estado assinou portarias que criam o Programa Estadual de Bem-Estar Animal e que apresenta o novo modelo de identificação de vacinação contra a brucelose. “Bem-estar animal significa segurança jurídica, garantindo um documento que comprova boas práticas, valorizando a pecuária paulista e abrindo novos mercados internacionais, cada vez mais restritivos”, destacou o secretário Guilherme Piai.

O governo apresentou um novo modelo de identificação de vacinação contra brucelose ao setor pecuário. Trata-se de uma alternativa, mas não obrigatória, à marcação a fogo utilizada nas bezerras de três a oito meses de idade vacinadas. Essa é uma forma de estimular a produtividade e a qualidade do manejo, além de aumentar a segurança do trabalhador rural e do médico veterinário. O bem-estar animal contribui com uma imagem positiva do setor pecuário paulista e de seus produtos.

A pecuarista Carmen Perez, homenageada no lançamento por sua notável defesa pelo bem-estar animal, concorda sobre os benefícios sustentáveis e produtivos da inovação lançada pela Secretaria de Agricultura. “É um grande prazer saber que São Paulo abra o caminho para essa escolha importantíssima. Já existem pesquisas no mundo todo demonstrando os prejuízos da marcação no animal, realizada em um local cheio de terminações nervosas. Parabenizo todos envolvidos no projeto que vai transformar a cadeia produtiva”, destacou a pecuarista e palestrante.

Esse é o desejo de diversos pesquisadores especialistas em bem-estar animal, como os integrantes do Grupo Etco – Grupo de Estudos e Pesquisas em Etocologia e Ecologia Animal da Unesp. Confira a entrevista com a doutora em zootecnia e professora da UFMT, Fernanda Macitelli. A zootecnista explicou os impactos negativos da prática e ofereceu alternativas que inclusive melhoram a gestão do pecuarista.

A especialista citou que além da dor que causa no animal, prejudicando o seu bem-estar, a marcação também traz prejuízos à pecuária por conta de danos no couro, que podem levar a desvalorização do preço pago ao produtor. Macitelli citou a reportagem “Problemas de manejo geram US$ 1 bilhão de perdas para o mercado de couro do Brasil”, que informa que problemas de manejo dentro da porteira, como a marcação a fogo em primeiro lugar e parasitas em segundo, são responsáveis por 20% deste montante.

Às vezes o pecuarista não tem essa informação, mas o couro é responsável por 10 a 15% do valor da arroba. Então se o mercado do couro está interessante, o valor da arroba também sobe. É que o produtor não recebe pelo couro separado. Uma porcentagem do valor da arroba é o couro”, citou.

Macitelli alertou também que já existem ONGs internacionais instaladas em países concorrentes na produção pecuária, como na Índia, que estão usando vídeos da prática no Brasil para diminuir a competitividade da cadeia produtiva nacional. Também citou que empresas de calçados e demais artigos em couro se recusam a fechar contratos para compra da matéria prima brasileira por problemas deste tipo na cadeia produtiva.

Entretanto, a marcação a fogo é uma das principais ferramentas de gestão do pecuarista, identificando seus animais com diversos objetivos, como saber quais indivíduos pertencem ao seu próprio rebanho, nascimento, desempenho reprodutivo, entre outros. Chega até a ser uma obrigação, como no caso da marcação para informar a vacinação contra a brucelose. Então como será possível substituir esta prática por formas mais modernas de gestão de rebanho?

Para despertar esta possibilidade nos produtores, o Grupo Etco, junto com empresas apoiadoras, vai lançar uma campanha de conscientização, conforme revelou a zootecnista. “Nós vamos lançar uma campanha pela redução do uso da marca a fogo e o nome dela será ‘Uma nova marca para o Brasil’. A gente pretende levar esta informação ao pecuarista e às associações de como fazer esta redução e o quanto isso é importante para a nossa pecuária, a nossa imagem e, é claro, para os animais”, informou.

Segundo Macitelli, o objetivo não é proibir a marcação de imediato, mas sim capacitar os produtores a usar outras tecnologias e ferramentas, como tatuagem, brincos e bottons para que eles abandonem aos poucos o uso dos marcadores a fogo.

Projeto “Redução da Marca a Fogo”

Imersas em realidades diferentes estão duas das propriedades do Grupo Rio Corrente Agropastoril, a Fazenda da Serra, em Coxim (MS) e a Fazenda Baia do Lara, em Corumbá, no Pantanal sul-mato-grossense. Ambas foram escolhidas para serem propriedades referência do projeto “Redução da Marca a Fogo” em bovinos, que propõe a substituição da técnica pela identificação dos animais por meio de brincos. O trabalho, que começou em julho com cursos e treinamentos online, evoluiu para a prática, focada, principalmente, nos bezerros.

A iniciativa é conduzida pela empresa BE.Animal, o grupo ETCO – Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal, da Unesp – Jaboticabal e a Fazenda Orvalho das Flores.

Segundo o professor da Unesp de Jaboticabal (SP), Mateus Paranhos é durante o manejo de nascimento que o furo é feito na orelha do bezerro, sem a colocação do brinco. “A prática dá tempo para a cicatrização correta e diminui o risco de infecções. Além disso, no momento do bezerro receber o brinco, o manejo prévio garante um maior índice de retenção dessa identificação”.

As mudanças promovidas com o projeto “Redução da Marca a Fogo”, como explica o professor Paranhos, vão além do objetivo inicial e resultam em maior integração da equipe, mais segurança no trabalho dos vaqueiros e melhora do bem-estar dos bezerros.

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