Decisão do STF sobre quilombolas abre brecha para volta dos conflitos agrários
Nesta sexta-feira (09), o jornalista João Batista Olivi, do Notícias Agrícolas, convidou Rodinei Candeia, procurador do estado do Rio Grande do Sul, para debater a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a validade do decreto que definiu regras para reconhecimento e demarcação de terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas.
Como explicou Candeia, a autodeclaração da origem pessoal, a coletivização da propriedade e as desapropriações que serão feitas pelo Incra são os três principais pontos que vão gerar, novamente, a insegurança jurídica nos campos brasileiros.
A discussão no STF foi originado por contestação feita pelo Democratas (DEM), que questionava a forma com a qual essas áreas são identificadas: pelo critério da autoatribuição.
Na entrevista ao Notícias Agrícolas, o Procurador Rodinei Candeias chama a atenção para os conflitos que essa decisão pode gerar em torno do direito agrário, uma vez que o julgamento rompeu posições defendidas pela CNA (representando os produtores rurais e entidades de defesa da propriedade e produção rural – que, obviamente, serão os atingidos pela decisão do STF).
A CNA (Confederaçao Nacional da Agricultura e Pecuária) apresentou memoriais pela inconstitucionalidade do decreto.
O decreto foi editado em 2003 por Lula, presidente à época, regulamentando a concessão de terras para comunidades negras tradicionais que vivem em áreas conhecidas pela resistência à escravidão no passado.
Acompanhe abaixo a posição de quem defende a decisão do STF:
Propriedade definitiva aos quilombolas é correção histórica (por ELOISA MACHADO DE ALMEIDA, na FOLHA)
Remanescentes de quilombos foram, por muito tempo, povos invisíveis ao Estado de Direito (ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA é professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP)
Após quase 14 anos de tramitação da ADI 3239, o Supremo Tribunal Federal, por expressiva maioria, declarou constitucional o decreto 4.887/2003, que trata dos procedimentos da demarcação de terras quilombolas. Seus remanescentes, em plenário, assistiam à sessão.
Em geral, os ministros compartilharam três pontos principais.
O primeiro ponto em comum foi a constatação de que remanescentes de quilombos foram, por muito tempo, povos invisíveis ao Estado de Direito. Ademais das indeléveis marcas da vergonhosa escravidão, sofreram todo tipo de violência e opressão racial, expulsos de suas terras, perseguidos. O reconhecimento da sua existência e de seus direitos pela Constituição foi o primeiro passo de correção de uma injustiça histórica.
O segundo ponto da argumentação partilhado entre os ministros tratou da vinculação da propriedade coletiva com os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das comunidades quilombolas. Nesse sentido, a territorialidade é muito mais do que a simples propriedade; é o espaço onde se realizam os usos e costumes, onde se preservam e reproduzem suas práticas culturais; uma forma de reconhecer as diferenças e a pluralidade de formas de viver
Por fim, o terceiro ponto abordado pelos ministros tratou de questões técnicas relevantes para a interpretação dos direitos fundamentais.
Enfrentando o argumento de que, em vez de um decreto presidencial, uma lei deveria tratar do tema, os ministros reafirmaram que os direitos humanos e fundamentais previstos na Constituição têm aplicabilidade imediata.
Isso se daria justamente para garantir, no interior da Constituição, os direitos das minorias, a quem o Supremo Tribunal Federal também protege em sua função contramajoritária.
Outro argumento importante pontuou que as normas internacionais de proteção a direitos humanos exigem o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas, declarando a incidência da Regra 169 da Organização Internacional do Trabalho —OIT no caso.
Gilmar Mendes e Dias Toffoli ficaram vencidos na posição de que o direito só poderia ser conferido àqueles remanescentes que ocupassem as terras na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Essa tese, chamada de “marco temporal”, foi o ponto central de embate entre os ministros.
A maioria, porém, considerou a aplicação do “marco temporal” um tipo de prova impossível de ser feita, uma conivência com séculos de perseguição e expulsão que afetaram as comunidades remanescentes quilombolas. Derrotados, ambos os ministros não presenciaram o final da sessão.
O reconhecimento da propriedade definitiva aos remanescentes de quilombos é uma disposição constitucional originária, prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A ação que estava em trâmite no tribunal não havia suspendido o decreto, mas fazia pairar um certo grau de insegurança às demarcações, como um combustível para conflitos sobre a terra.
Agora, a decisão vincula os órgãos do Judiciário, Legislativo e Executivo, que terão dificuldades em resistir à implementação —ainda que tardia— da Constituição.
Acompanhe agora a notícia da folha:
STF mantém decreto que regulamenta terras de quilombolas
Oito dos 11 ministros mantiveram procedimento de autodefinição das comunidades (POR LETÍCIA CASADO)
O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta quinta-feira (8) manter o decreto que regulamenta o procedimento para demarcação e titulação das terras quilombolas.
Oito dos 11 ministros decidiram manter o atual procedimento, de autodefinição das comunidades remanescentes de quilombos: para ser reconhecida, a comunidade recebe um certificado de autorreconhecimento emitido pela Fundação Palmares (ligada ao Ministério da Cultura) e então pleiteia junto ao Incra a titulação do seu território.
Assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, o decreto foi contestado em 2004 pelo PFL (hoje DEM). O julgamento começou apenas em 2012, mas foi interrompido por pedidos de vista.
O partido argumentou que o decreto distorce o texto constitucional e, portanto, invade esfera reservada à lei, com procedimentos que resultariam em aumento de despesa. Assim, essa atribuição caberia ao Congresso, e não aos próprios quilombolas.
Para o PFL, o critério de autodeclaração dos quilombos poderia influenciar o direito à propriedade, fazendo com que pessoas que não têm relação com quilombolas tentassem obter as terras.
“A ideia de que pudesse haver fraude é um pouco fantasiosa, porque seria preciso enganar muita gente, seria preciso que a comunidade quilombola criasse uma sociedade puramente imaginária”, disse o ministro Luís Roberto Barroso.
A questão mais polêmica envolvia o marco temporal, mas os ministros não entraram no mérito do assunto.
Além de Barroso, Rosa Weber, Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Celso de Mello e a presidente, Cármen Lúcia votaram pela validade do decreto.
Já Dias Toffoli e Gilmar Mendes julgaram o decreto procedente em parte, mas entenderam que deveria ser definido como marco temporal a Constituição de 1988.
Relator da ação, o ministro aposentado Cesar Peluso concordou com os argumentos do DEM e votou em 2012 pela procedência da ação. Assim, Alexandre de Moraes —que substituiu Teori Zavascki, que, por sua vez, substituiu Peluso—, não participou do julgamento.
Por: João Batista Olivi
Fonte: Notícias Agrícolas/FolhaS.Paulo