As várias tentativas de blindagem, criação de “holding patrimonial”, testamento, antecipação da legítima, doação em vida, gestão não familiar, criação de governança corporativa, entre outros, tem grande utilidade e aplicação em grupos familiares.
Por Renato Bernhoeft
Mas nenhuma delas ataca, verdadeiramente as causas de conflitos em famílias empresárias. Elas são, em sua maioria, de origem cultural e emocional.
Com base em pesquisa da höft consultoria, nos seus 43 anos de atuação com famílias empresárias no Brasil e outros países da América Latina, cerca de 70% dos patrimônios familiares são destruídos, o que é um índice bastante elevado. O exame mais aprofundado das causas apresenta alguns pontos que merecem destaque em nossa realidade.
Em primeiro lugar, a maioria dos nossos empreendedores tem uma origem simples — muitos foram imigrantes que fugiram de situações extremamente adversas — e com forte dedicação ao trabalho. Preocupados em construir algo e em deixar um patrimônio aos seus descendentes, se tornaram pais ausentes, patriarcais e muito dogmáticos nas suas relações familiares. A consequência, em muitos casos, é uma relação de conflitos, e nem sempre geracionais.
Muitos, inclusive, se esforçaram para proporcionar aos filhos — do ponto de vista estritamente material — o que eles próprios não tiveram em sua infância ou adolescência. Mas essa conduta de acumulação não está, necessariamente, acompanhada de um preparo dos herdeiros para o gerenciamento do patrimônio que irão receber. A transferência de uma herança, sem o devido legado, termina provocando baixa identificação emocional com o que é herdado. Entenda-se por legado tudo aquilo que faz parte da construção do patrimônio na perspectiva histórica, dos valores e sacrifícios que foram necessários.
A maioria dos patriarcas preocupa-se em buscar soluções estruturadas, tanto do ponto de vista legal quanto tributário, para a transferência dos recursos. Mas não se permitem tempo, paciência e afeto na transmissão dos significados que impregnam aquilo que foi materialmente acumulado.
Outro ponto importante é a constatação de que nem todo empreendedor se torna um empresário. Entenda-se empresário como alguém que compreende suas conquistas numa perspectiva de continuidade através das novas gerações.
A relação do criador, ou empreendedor, com sua criatura, a empresa ou patrimônio, é de um caráter tão visceral que ele não imagina a criatura sem ele. Nessa condição, não consegue desprender-se dela, o que dificulta a inserção de seus descendentes no processo de sucessão e continuidade.
Tendo em vista que esse afastamento é provocado pelo receio da perda de poder, a única alternativa para as exceções que acompanhamos foram aquelas onde o empreendedor conseguiu encontrar novas fontes de preservação da auto-estima, por meio da substituição do poder.
Outro componente forte neste contexto é o despreparo dos cônjuges destes empreendedores para lidar com sua falta. Não estamos aqui falando de preparo para o gerenciamento dos negócios, mas do entendimento do seu papel em um contexto ambíguo de conflitos, onde a variável familiar tem grande importância.
Especialmente quando a família desenvolveu uma cultura do “faz de conta” que está tudo bem, e vive uma integração hipócrita para iludir os pais, ou até mesmo a sociedade, de maneira geral.
Ou seja, os conflitos e divergências são omitidos, para “poupar” todos de algum posicionamento que não se ajuste às expectativas dos demais. Em muitas famílias a institucionalização de um coletivo forçado inibe o surgimento e realização da individualidade.
Merece também destaque estruturas familiares e patrimoniais que desenvolveram uma conduta de dependência financeira do patrimônio comum. Impede-se, sob varias formas, que a nova geração possa criar fontes alternativas de liquidez que sejam administradas à sua maneira.
Considerando que, no médio e longo prazo, os padrões de vida dos novos núcleos familiares inevitavelmente terão diferenças, a não-aceitação de lidar com as desigualdades pode criar uma postura de passividade na busca de soluções que não venham do principal negócio.
Este quadro de complexidade se amplia quando a maioria dos envolvidos olha a empresa da família como sua única alternativa de realização profissional.
Por fim, ainda muito distante de esgotar o assunto, surge a tentativa de procurar repetir nas novas gerações o modelo de sociedade/propriedade que norteou a primeira geração. Poucas famílias compreendem que a partir da segunda geração necessitam preparar para o papel de sócios um grupo de pessoas em que não houve a liberdade da escolha. Portanto, apesar de uma relação de irmandade ou entre primos, encarar-se como sócios é um fato novo que exige preparo, humildade e muita confiança mútua.
O grande desafio para a maioria das famílias empresárias não está no desconhecimento destas questões. É na resistência, ou incapacidade de lidar com estes temas na forma de diálogo. Seja para concluir que podem continuar juntos, ou para dividir e vender o patrimônio.
A maioria que sucumbiu a esses desafios não foi vendida, mas comprada por concorrentes ou investidores, sem nenhum envolvimento emocional. Fica aqui a provocação para que as famílias empresárias tratem este tema — idealmente, de forma preventiva.
Renato Bernhoeft é fundador e presidente do conselho de sócios da höft consultoria.
Fonte: Valor Econômico.