Segundo a BRF, os valores ainda são altos, mas o objetivo é de que o valor se iguale ao valor das outras proteínas.
Você já imaginou comer a carne de um animal que ainda está vivo? Parece loucura, mas a tecnologia já existe. E o mais interessante: a chamada carne cultivada vai chegar aos supermercados do Brasil em 2024, promete a BRF, gigante da indústria.
Segundo Sérgio Pinto, o diretor de inovação da companhia a tecnologia promete uma revolução na pecuária. Afinal, as fazendas de carne cultivada não terão pasto nem animais. E, como a carne é feita de células, a genética ganhará ainda mais força. Os cortes sairão diretos de um reator, onde células serão alimentadas em um ambiente controlado. E em vez de esperar dois anos até o boi crescer, o pedaço de carne ficará pronto em 30 dias.
A projeção da BRF é que as primeiras versões custem de US$ 30 a US$ 40 o quilo (cerca de R$ 150 a R$ 200). “Mas objetivo é chegar a um valor equivalente às outras proteínas. Queremos que a escolha do consumidor seja por questões nutricionais e ideológicas, não pelo preço”, destaca Sérgio Pinto.
Segundo ele, que já experimentou, a carne cultivada tem tudo para surpreender os fãs de churrasco. “Foi mais interessante do que saboroso nesse momento. A estrutura é perfeita e a mordida entregou bastante da textura que se está buscando”, afirmou.
Como será a carne cultivada vendida no Brasil em 2024?
Sérgio Pinto – Ela não é uma carne vegana, mas preza pelo bem-estar animal, pois não tem abate. É feita a partir de células, que vão recebendo nutrientes em um reator. Depois, essa espécie de massa de hambúrguer é estruturada em uma bioimpressora. A carne cultivada é preparada independentemente de todos os fenômenos que podem ocorrer no campo e vem livre de qualquer tipo de atividade humana e de antibióticos. Também diminui o consumo de terra para 4% do que se usaria considerando o boi em pé. Além disso, os ciclos são muito diferentes. O boi fica no mínimo dois e muitas vezes até quatro anos no pasto. Apesar de ainda estar em desenvolvimento, dados apontam que o ciclo da carne cultivada vai ser entre 25 e 30 dias. Outro elemento importante é que não há necessidade de alimentar o animal. Portanto, não exige esforço e espaço para plantar soja, milho e farináceos para ração.
O gosto vai ser exatamente igual ao da carne animal?
Sérgio – A carne é composta de três grandes elementos: músculo, gordura e osso, que não vamos precisar fazer porque o animal não vai ficar em pé. Se você não temperar uma carne hoje, não terá muito sabor. Então, a gente vai precisar seguir temperando no caso da carne cultivada. Ainda estamos estudando os impactos do manejo e da criação no sabor. Mas entendemos como fator de alteração a forma como alimentamos a célula no reator. É óbvio que, com o desenvolvimento da tecnologia, vamos conseguir no futuro trabalhar com diferentes raças e replicar sabores e marmoreios. Então, podemos afirmar que a carne vai ter o mesmo sabor.
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Até que ponto o rótulo “carne de laboratório” preocupa a BRF no sentido de adesão do consumidor?
Sérgio – Sou totalmente contra o uso de termos como carne de laboratório, são termos que espantam. E ela não é uma carne de laboratório. Está sendo desenvolvida em laboratório, mas a ideia é que, no futuro, seja produzida em biofazendas. Hoje, as carnes convencionais, sejam vegetais ou animais, também passam por testes laboratoriais. Então, eu poderia falar que a carne de boi, frango, suíno ou peixe também é de laboratório. Isso ocorre com a carne cultivada porque está em testes e desenvolvimento dentro do laboratório, mas é uma etapa.
Até que ponto o rótulo “carne de laboratório” preocupa a BRF no sentido de adesão do consumidor?
Sérgio – Sou totalmente contra o uso de termos como carne de laboratório, são termos que espantam. E ela não é uma carne de laboratório. Está sendo desenvolvida em laboratório, mas a ideia é que, no futuro, seja produzida em biofazendas. Hoje, as carnes convencionais, sejam vegetais ou animais, também passam por testes laboratoriais. Então, eu poderia falar que a carne de boi, frango, suíno ou peixe também é de laboratório. Isso ocorre com a carne cultivada porque está em testes e desenvolvimento dentro do laboratório, mas é uma etapa.
“O objetivo é buscar um preço equivalente às outras proteínas. A gente quer que a escolha do consumidor seja motivada por questões nutricionais e ideológicas, não pelo preço”
Sérgio Pinto, diretor de inovação da BRF
Quanto a BRF está investindo em carne cultivada? A produção da carne vendida no Brasil será feita aqui ou em outro país?
Sérgio – Tem algumas coisas que, infelizmente, não posso responder. O que posso dizer é que investimos US$ 2,5 milhões para ser parte do corpo societário da Aleph Farms (startup israelense que é uma das principais empresas de carne cultivada do mundo). Além disso, temos acordo de exclusividade para produção e venda no Brasil. É óbvio que não fechamos portas para outras possibilidades que possam acelerar nosso nível de conhecimento, mas o que temos trabalhado, inclusive junto aos órgãos competentes nacionais, é que seja uma tecnologia produzida e consumida no Brasil. Entretanto, essa tecnologia hoje tem conhecimento vindo de todos os lugares. Então, usamos conhecimento dos times israelenses conjugados com o brasileiro. E o Brasil é um polo de produção científica acadêmico sobre o assunto, tem muitos talentos.
Por que a BRF escolheu a Aleph Farms como parceira?
Sérgio – Iniciamos em 2018 uma varredura sobre diferentes fontes de proteína. Em 2019, começamos conversas com a Aleph Farms e identificamos não só o nível de desenvolvimento e corpo técnico, mas os valores. É uma empresa que tem uma preocupação muito sincera com o impacto no meio ambiente e trabalha sem usar soro fetal bovino. Então, isso foi um critério muito relevante na escolha. As lideranças das equipes trabalham muito bem juntas e existe uma retroalimentação de conhecimento, que é importante em ciência aplicada. E a Aleph Farms é reconhecida como uma das top 3 quando se fala de carne cultivada no mundo.
Já há uma estimativa de preço inicial ou algum comparativo sobre a diferença de valor entre a carne cultivada e a carne tradicional?
Sérgio – Hoje, a tecnologia ainda é muito cara. No caso das proteínas vegetais, por exemplo, boa parte nasce no nosso campo e vai ser isolada e hidrolisada fora do Brasil, voltando com um custo mais alto. Adicionalmente a isso há uma questão de escala. Hoje, o nível de oferta e demanda ainda não está equilibrado. Na carne cultivada, ainda estamos em desenvolvimento, não existe uma fábrica ou biofazenda. A Aleph Farms está trabalhando para, a partir do fim deste ano, construir suas primeiras operações piloto e começar a produzir em escala semi industrial. Isso é um processo que leva pelo menos até 2024 e estamos trabalhando junto aos governos, também, para ter uma visão regulatória pertinente. Hoje, tem testes em que a produção custa US$ 1 mil o quilo e outras que sai US$ 300. A gente acredita que, em 2024 e 2025, a carne cultivada vai estar na casa dos US$ 30 a US$ 40 o quilo. Ainda é alto, mas muito mais baixo do que hoje. O objetivo buscar um preço equivalente às outras proteínas. A gente quer que a escolha do consumidor seja motivada por questões nutricionais e ideológicas, não pelo preço.
A ideia é iniciar a venda em supermercados ou em restaurantes?
Sérgio – A carne vegetal dá boas pistas de como isso vai ser. Provavelmente, em um primeiro momento, o consumidor vai querer um chef produzindo para ele, mas também vai buscar uma marca que traga confiança. Entendemos que o restaurante é sempre um caminho óbvio e construtor de tendências, mas tem que ir também para o varejo e o supermercado para virar efetivamente uma solução para o dia a dia das pessoas.
Já há negociações com restaurantes ou supermercados no Brasil?
Sérgio – Estamos pensando, mas negociando ainda não. É muito cedo. Vamos aguardar um pouco e seguir mais no desenvolvimento, na parte regulatória e nos diálogos com consumidores e influenciadores para entender como a gente faz para que a mensagem, o impacto e o produto propriamente dito cheguem à sociedade.
Qual será o impacto desta carne na cadeia da pecuária?
Sérgio – É muito grande, pois a carne cultivada não precisa mais de uma grande extensão de terra para produção. E não precisa, necessariamente, ter todo o boi porque pode produzir só um corte específico. Não é surpreendente que países como Japão, Cingapura e Israel estão incentivando a tecnologia e fomentando empresas e sistemas regulatórios. Países que não tem hoje tamanho nem importância em consumo ou produção de proteínas podem ser futuros provedores de tecnologia. Então, é um impacto que muda as regras do jogo e toda uma cadeia. Mas é muito cedo ainda para falar se ela vai ser dominante.
Como estão as tratativas para criar uma biofazenda no Brasil? E quais são as principais diferenças dela em relação a uma fazenda tradicional?
Sérgio – Ela difere muito de uma fazenda convencional pelo simples fato que não tem um único animal em pé. Outro fato é que não tem campo ou pasto. Vamos continuar precisando de água e energia, obviamente em uma escala inferior. As competências em transformar um corte de carne em um alimento final seguem as mesmas, assim como a cadeia de distribuição. O que muda dentro da biofazenda é que os processos estão muito mais próximos da área farmacêutica do que de uma indústria de alimentos. Inclusive, essa mistura de talentos de áreas distintas vai ser muito benéfica na expansão da tecnologia.
A genética do animal usado como matéria-prima para a carne será brasileira ou importada?
Sérgio – Infelizmente, não posso responder nesse momento, esse é um dos segredos que estamos trabalhando. Vamos abrir, mas ainda não temos uma resposta definitiva.
Que outros impactos em sustentabilidade e logística a produção de carne cultivada demandará? A ideia é que as biofazendas sejam construídas mais perto dos centros urbanos?
Sérgio – Estamos estudando isso, não é uma resposta fácil ainda. Se está mais próximo dos grandes centros urbanos, fica mais fácil levar o produto a um preço melhor para o consumidor. Por outro lado, estamos vivendo um momento de crise hídrica e elétrica bem relevante e, quem sabe, seja melhor estar mais próximo de um grande centro de produção de energia e rico em recursos hídricos. Ainda não temos a conta fechada, estudamos essas duas óticas.
Como o produtor rural brasileiro participará do mercado de carne cultivada? A ideia é que os integrados da BRF sejam incluídos?
Sérgio – A gente tem um planejamento de longuíssimo prazo e enxerga que o consumo das proteínas animais vai seguir crescendo, obviamente buscando mais eficiência e menos uso de recursos. Então, entendemos que continuará tendo espaço para os nossos integrados. Só que isso abre uma oportunidade, também, para outras profissões e novas competências, como na área de produtos alimentares de bioimpressão, de técnicos de produção com perfil muito mais farmacêutico do que alimentar. Outras profissões vão nascer.
A BRF está investindo na formação de profissionais específicos para atuar no setor de carne cultivada?
Sérgio – Se você pensar em um curso regular, não dá tempo de formar esses profissionais. Vai ter, sim, de alguma maneira, uma osmose entre competências atuais e de outras áreas. Já estamos tendo alguns módulos em muitas universidades para começar a formar, educar e dar visibilidade ao que está acontecendo. Além disso, a gente não só tem trabalhado para formar pessoas, mas em um método colaborativo porque o talento é extremamente relevante e, muitas vezes, raro nessa área. Nós, como indústria, temos o papel de fomentadores e de construtores. Estamos vivendo uma grande revolução nos modelos de produção. A partir do momento que você começa a fazer carne sem abater um boi, muda totalmente a conversa.
“O importante é a indústria trabalhar para achar soluções que deem suficiência alimentar ao mundo sem danificar ou danificando menos o ambiente. Temos que ser muito mais eficientes do que a gente tem sido”
Sérgio PintoSérgio Pinto, diretor de inovação da BRF
Como a BRF se organizará para oferecer os cortes que o consumidor quer, já que não produzirá o boi inteiro? Está nos planos, também, misturar proteínas ou até ter uma carne mesclando músculo bovino e gordura de peixe, por exemplo?
Sérgio – Hoje, já há uma série de produtos no mundo que mesclam gordura animal com carne vegetal. Você pega por exemplo a fibra de jaca, que lembra a estrutura, e coloca gordura animal para trazer sabor. Acho que, para o consumidor, seria inovador demais misturar gordura de porco com músculo de boi ou frango. Mas os blends vão acontecer. O importante é a indústria trabalhar para achar soluções que deem suficiência alimentar ao mundo sem danificar ou danificando menos o ambiente. Temos que ser muito mais eficientes do que a gente tem sido.
A BRF tem conversado e negociado com o governo aspectos regulatórios e incentivos para este novo jeito de fazer carne?
Sérgio – Na carne cultivada, o desafio é ainda maior porque não é somente um aspecto regulador, é o papel que o Brasil quer ter na mesa de comércio internacional de proteínas. Temos que exigir e trabalhar juntos com o governo para conseguir um papel de fomentador e não só de regulador. Essa é a nossa grande batalha. Não podemos ficar só esperando que venha uma regulação. Temos que ajudar na interpretação e dar todas as informações relevantes. O Brasil tem que ser um fomentador e não um comprador de tecnologias.
Você já comeu a carne cultivada? Como foi a experiência?
Sérgio – Sou bem eclético, gosto de todos os tipos de proteína. Então, obviamente, eu estava extremamente ansioso. Ela me lembrou bastante um sabor de carne vegetal até porque o pedaço não era 100% carne cultivada, tinha também algumas estruturas vegetais. O que posso dizer é que foi mais interessante do que saboroso nesse momento, pois não tinha muito tempero. Eu não quis temperar excessivamente para não comer algo com gosto de pimenta. Porém, foi muito interessante. A estrutura é perfeita e a mordida também entregou bastante daquela textura que se está buscando.
Fonte: Revista Globo Rural