Artigo “Pecuária do Sul: Vamos azebuar tudo!” assinado por Fernando Furtado Velloso fala sobre os desafios da pecuária no sul do país
Nesta busca mensal de temas atuais para este espaço na Revista AG, venho sempre trocando ideias com a editora da Revista AG, Thaise Teixeira. Trocamos mensagens sobre as pautas principais da edição e os assuntos que teriam conexão com as demais matérias do mês. Este artigo veio com a dica dela: “Velloso, o tema da edição é cruzamento e podes falar sobre o crescimento das sintéticas no Sul, a possível diminuição das raças puras, os leilões de primavera estão mostrando isso… mas, por outro lado, temos a única indicação geográfica para carne no Brasil.” Somos conhecidos e reconhecidos por produzir carne diferenciada (de raças europeias), e a retomada dos cruzamentos e a possível ampliação do uso de zebuínos nos afasta disso.
O contexto é o seguinte aqui pelo Sul do Brasil: o carrapato nos atropelou, passou por cima, deu ré, passou por cima de novo, e, quando achávamos que ele estava satisfeito (inverno), nos mostrou que estava vivo: carrapateou até os cordeiros. Tratamentos? Preventivos, estratégicos, terapêuticos, homeopáticos, esotéricos e outros mais fizemos. Imersão, aspersão, injetáveis, pour on, separados, combinados ou todos juntos fizemos também. Nessa prova de campo, a maioria dos alunos foi reprovada. Seguramente, esta história muita gente já viveu ou ouviu, e até já anda meio cansado de tanto se falar no mesmo assunto. Antes, falávamos em nossos encontros nas exposições, dias de campo e remates. Hoje, seguimos na mesma batida nos grupos do whatsapp. O preço do gado e o carrapato seguem liderando os temas mais falados entre nós.
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Muito bem. E diante deste inimigo que vem ganhando de goleada o que podemos fazer? Azebuar o gado é a primeira resposta de muitos. Faz sentido, pois já lemos por aí, várias vezes, dos coaches da pandemia: “insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. Seguir com os mesmos manejos, tratamentos e gado é continuar fazendo a mesma coisa. Se o zebuíno é sabidamente mais resistente aos ectoparasitas, e especialmente ao carrapato, este insumo genético deve ser considerado. Tanto é verdade, que vemos o grande interesse pelas raças sintéticas, especialmente pelo Brangus. Tanto é verdade, que a própria Associação Brasileira de Angus passou a registrar e promover uma raça resultante do cruzamento Angus x Brangus, o Ultrablack. Se não pode vencer seu inimigo, junte-se a ele (ando muito frasista ultimamente). Tenho um amigo muito próximo que diz que ando muito “dinheirista”, mas ando mais “frasista”.
Aprendi na Faculdade de Veterinária (UFRGS), concordei, busquei mais leitura e vivi na prática uma recomendação muito técnica e clara: raça pura é para selecionador (produtor de genética), e cruzamento para todo produtor comercial (gado geral). Fazer cruzamentos entre raças de forma bem conduzida eleva a produtividade dos rebanhos, incrementando eficiência reprodutiva e desempenho. Sim, é possível elevar taxa de prenhez, repetição de cria e peso ao desmame, por exemplo, com a simples decisão de cruzar a raça A com a B, especialmente, se as raças forem distantes geneticamente (ex: taurinos x zebuínos). Cruzar britânico com britânico pode até fazer um animal bonito (careta), mas mínima heterose traz aos produtos, e poucos ganhos produtivos são obtidos. “Crie, cruze e não faça careta” foi título e tema de um outro artigo meu. Mas não vou explicar o jogo de palavras de novo. Entendedores entenderão.
Então a reposta é simples? Vamos azebuar tudo? Com mais influência de genética zebuína, teremos animais mais tolerantes ao calor, mais adaptados ao nosso meio, mais resistentes ao carrapato e, também, com ganhos em heterose (rebanhos potencialmente mais produtivos). Sim, verdade. Mas, teremos também animais de pior temperamento, maior despadronização dos rebanhos, carne menos macia e perda de um diferencial importante do nosso produto: animais e carne de raças europeias.
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Em função do meu retorno às aulas, agora no curso de Pós-Graduação em Zootecnia, tenho tido a oportunidade de ouvir e aprender com mais atenção com alguns antigos professores meus da graduação. O professor José Fernando Piva Lobato segue firme e forte defensor do uso de zebuínos e de programas de cruzamento. Defende, com convicção, que é melhor termos animais e rebanhos mais adaptados ao nosso meio do que buscar características de baixa importância ao pecuarista (vide marmoreio e outras). Defende, faz muitos anos, que é mais importante ter eficiência reprodutiva (maiores taxas de desmame) do que padronização racial e outras características visuais.
Com uma abordagem mais voltada à cadeia produtiva e ao mercado, o professor Júlio Barcellos aborda, em suas aulas, e traz fundamentos teóricos sobre as questões relacionadas às características do produto e aos “drivers” que puxam o sistema de produção para um lado ou outro (não achei um bom termo em português para a expressão). As preferências dos terminadores, as bonificações dos frigoríficos, a exportação de animais vivos são “drivers” que conhecemos bem no nosso dia a dia. Preteamos o nosso gado na busca de bonificações dos frigoríficos, e deixamos inteiros os nosso terneiros para não perder a chance de embarcar em algum navio. Provavelmente, com um gado bem azebuado, encontraríamos essas duas portas semi abertas ou fechadas. Devo ter super simplificado os conceitos que tenho recebidos de meus professores, mas são riscos de quem conta histórias com número de caracteres limitado. Espero que compreendam. Se negativo, faço as cadeiras de novo.
Está posto o paradoxo que citei no subtítulo desse texto. Podemos jogar a toalha, entregar os pontos e azebuar geral. Se não formos cuidadosos, iremos retroceder muitos anos em padronização dos rebanhos gaúcho e catarinense. Poucos terão a disciplina e o total controle dos sistemas de produção para realizarem somente cruzamentos terminais, abatendo machos e fêmeas deste F1 sulista. Ficarão fêmeas ½ sangue Zebuínas em reprodução em nossos rodeios. Sabe-se lá com que touros serão cruzadas, e voltaremos algumas décadas no passado em relação à composição e à padronização de nosso rebanho. Terá escorrido pelos dedos tantos anos e anos de trabalho contínuo das Associações de Angus e Hereford para a produção de carne de qualidade e diferenciação e valorização de nosso produto final.
É no Sul que podemos produzir carne de qualidade, de animais europeus, criados e terminados a pasto. Não somos competitivos em escala. Os estados do Centro-Oeste e Norte já nos passaram faz anos em tamanho de rebanhos e número de abate. Temos a possiblidade de explorar valores que somente estão aqui no Sul: a cultura do gaúcho e a sua relação com a carne, o pampa e as pastagens de qualidade para produzir carne com sabor e saúde únicos, e as raças europeias para nos manterem com posicionamento diferenciado no mercado para os animais e produto final.
O caminho do cruzamento indiscriminado com zebuínos é uma solução rápida e efetiva para alguns desafios que temos no campo. Também é a via para desconstrução de alguns dos pilares que diferenciam a pecuária aqui do sul do mundo. Melhor refletir bem antes de apertar o botão errado no painel de comando.
Publicado na coluna Do Pasto ao Prato, Revista AG (Outubro, 2020)
Por Fernando Furtado Velloso
Assessoria Agropecuária FFVelloso & Dimas Rocha