Por uma mistura de fatores econômicos, ambientais e mudanças culturais em curso, a carne bovina vem perdendo a posição de protagonista na refeição do dia a dia no Brasil.
Em 2021, o consumo do produto no país caiu para o menor nível em 25 anos. Os números devem ter um aumento neste ano, mas vão “estagnar antes de 2025” segundo Guilherme Cunha Malafaia, pesquisador e coordenador do Centro de Inteligência da Carne Bovina da Embrapa Gado de Corte.
“Os níveis de consumo permanecerão muito baixos na maioria dos países em relação à média global até 2025, devido à recuperação mais lenta da covid-19 em alguns destes países, bem como aos crescentes déficits de oferta de carne bovina”, afirma Malafaia. E “não retornará aos níveis de picos anteriores” na América Latina, complementa.
A carne já é um item raro nas casas de dezenas de milhões de brasileiros que enfrentam algum nível de insegurança alimentar – ou seja, passam fome ou têm acesso irregular a comida em geral. A inflação da carne no acumulado de 12 meses até janeiro foi de 9,95%, segundo o índice IPCA-15 do IBGE. Em junho do ano passado, o acumulado chegou a 35,76%.
A Guerra da Ucrânia vai influenciar ainda mais os preços por causa do aumento nos valores do milho e dos fertilizantes – peças da cadeia de produção de carne. Malafaia explica que em torno de 15% da produção mundial de milho sai do Mar Negro, que banha metade do litoral ucraniano.
“Nos bovinos, o impacto maior será sentido na terminação que utiliza a ração. O aumento nos custos fará com que haja um pressão de repasse ao longo da cadeia de produção atingindo o consumidor final, que já se defronta com uma situação inflacionária no mercado doméstico.” Mesmo antes da guerra, o cenário mais otimista para trajetória de queda no preço da carne era 2023.
Dieta sem carne
A inflação que restringe o acesso ao produto se junta a outros incentivos para tirá-lo do cardápio. Principalmente a partir da década de 1980, pesquisas científicas começaram a ligar a carne vermelha a doenças cardiovasculares, a alguns tipos de câncer e a problemas como diabetes.
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No século 21, outros questionamentos ganharam força: a preocupação com os impactos ambientais da produção e o tratamento dado aos animais nessa indústria. São pressões exercidas por um público cada vez maior – e jovem.
Além dos novos adeptos do veganismo e vegetarianismo, há uma corrente bastante significativa de diminuição do consumo. Pesquisa do Ipec (antigo Ibope Inteligência) com 2.002 pessoas das cinco regiões do país em 2021, encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira, indicou que quase metade (46%) dos entrevistados deixam o item de fora do prato por vontade própria ao menos uma vez por semana.
É um movimento que chega até a pessoas que se definem como grandes apreciadoras de carne. “Moro com meu namorado tem uns 4 anos. Sempre fomos apaixonados por carne. Nossas refeições sempre tinham alguma proteína senão parecia que estava incompleta”, diz Camila Fuck, de Blumenau (SC), de 28 anos [o sobrenome de origem alemã sempre inspira curiosidade, ela conta].
A pegada da indústria
“As pegadas ambientais da cadeia produtiva da carne bovina estão bem documentadas”, diz Josefa Garzillo, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo (USP).
“Vão desde as elevadas emissões de gases do efeito estufa, uso de água, pisoteamento e degradação do solo, até a supressão florestal, destruição de habitats e dos biomas. Tudo isso numa época em que já chegamos a limites críticos de degradação ambiental.”
É estimado que o gado bovino necessite 28 vezes mais terra e 11 vezes mais irrigação que a criação de suínos e aves. A proteína bovina é apontada como o alimento que mais contribui para emissões de gases do efeito estufa. Segundo a pesquisadora, “a indústria da carne vai além da carne bovina e dos produtos à base de carne. Trata-se de um complexo agroindustrial bastante sofisticado, verticalizado, concentrado em poucos ‘players'”.
Garzillo considera que falta aos produtores ir “além da burocracia” e demonstrar “interesse genuíno” por quem é afetado por práticas e resultados de empresas do setor. “As formas de prestar contas e publicizar os resultados ambientais deveriam chegar ao consumidor final para facilitar escolhas esclarecidas, como selos ou certificações, e as declarações das pegadas de carbono por quilo de produto nos rótulos”, diz ela.
A BBC News Brasil questionou a Associação Brasileira de Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) sobre as críticas ao modo de produção das empresas, mas não recebeu resposta. Para Gus Guadagnini, diretor-executivo do The Good Food Institute Brasil, a necessidade de enquadrar práticas para ter acesso a mercados internacionais preocupados com sustentabilidade já traz impactos estruturais na indústria e na oferta de carne.
“Existe um movimento mundial de ter normas ambientais e de bem estar animal mais rígidas, existe a preocupação com o controle de doenças zoonóticas, então, há uma série de tendências globais que apontam para um cenário onde a carne tende a ficar talvez até mais cara e mais difícil de produzir.”
É algo ecoado por Malafaia, da Embrapa Gado de Corte, que enxerga uma tendência da carne bovina se tornar um produto cada vez mais “premium“, em meio a uma “percepção de mais saúde, qualidade e experiência” no seu consumo. Em paralelo, o consumo per capita de carne de aves vai crescer intensamente e superar em muito a carne bovina no mundo nos próximos anos.
O mercado do futuro
Guadagnini diz que a indústria está sob pressão, mas “a cadeia de produção é grande demais, importante demais para desaparecer da noite para o dia”. O mercado do futuro, no entanto, terá alterações cruciais. Ele cita um estudo da consultoria global Kearney que prevê o aumento do mercado mundial do produto entre 2020 e 2040 de US$ 1,2 trilhão para US$ 1,8 trilhão – mas apenas 40% será de carne tradicional. Os 60% restantes serão divididos entre carne de base vegetal ou cultivada a partir de células.
“Existem relatos de que em alguns supermercados a venda de hambúrguer vegetal já supera a venda de hambúrguer de carne”, diz Sérgio Pflanzer, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mas ele enumera uma série de desafios para que esse tipo de produto ganhe a mesma relevância e escala da carne tradicional.
“O consumidor precisa entender que os produtos análogos, feitos de plantas, são muito diferentes do alimento vegetal in natura. A soja e a ervilha são baratas, mas transformar isso em proteína isolada ou texturizada, juntar com mais 15 ou 20 ingredientes e processar na forma de hambúrguer, por exemplo, é um processo muito caro”, afirma Pflanzer.
Além dos produtos feitos a partir de vegetais, há a carne de laboratório, cultivada a partir de células de animais. O primeiro hambúrguer do mundo criado em laboratório foi feito a partir de fibras musculares produzidas com o cultivo de células retiradas de uma vaca.
Pflanzer também vê com ceticismo a popularização dessa modalidade: “Os custos de produção, mesmo que infinitamente menores hoje do que quando foram inicialmente idealizados, ainda é proibitivo. Não existe no mundo uma cadeia de suprimentos preparada para atender os volumes necessários para uma queda brutal nos preços”.
Passar pela aprovação dos consumidores, incluindo vencer a resistência por ser um produto “de laboratório”, enquanto há forte preferência por alimentos naturais, deve ser o desafio mais decisivo, diz Malafaia, da Embrapa Gado de Corte. “Além de sensorialmente aceitável (visão e paladar) e com preço competitivo, ela deve manter esses atributos consistentemente.”
Comida para 10 bilhões de pessoas
Há uma questão mais ampla na visão de Guadagnini, que é equacionar e repensar a produção de proteínas (e alimentos em geral) para as 10 bilhões de pessoas que viverão no mundo em 2050. É uma questão monumental: serão 3 bilhões a mais de pessoas que precisarão ser alimentadas, mas, ao mesmo tempo, há o desafio de limitar a emissão de gases em tempos de aquecimento global.
“Para cada caloria que eu extraio da carne, dez calorias foram usadas para a criação do animal ao longo da vida. Temos hoje 75% das terras aráveis do planeta gerando 12% das calorias consumidas. Porque eu planto grandes áreas de grãos, alimento os animais com esses grãos e esses animais viram caloria numa proporção de 10 para 1”, diz.
“Então eu desperdiço 90% das calorias que são produzidas pelo sistema de alimentação. Por isso, é difícil fazer crescer essa produção. A plantação de milho e soja para alimentar os animais e as áreas de criação já ocupam a maior parte do planeta Terra.” Mas Guadagnini (que é vegano) afirma que o sabor da carne é algo que vem acompanhando as pessoas há muitas gerações e não pode ser ignorado.
“Olhando para quatro problemas – segurança alimentar, meio ambiente, a saúde humana e a ética animal é que começa a se pensar: ‘beleza, o que a gente come então?’. Talvez a grande dificuldade disso seja exatamente a questão dos hábitos e tradições alimentares: as pessoas querem comer carne. Carne é gostoso. A comida mostra de onde a gente vem, mostra a nossa cultura, são as nossas receitas de família.”
Ele vê nas proteínas alternativas o caminho para solucionar o desafio e considera a tecnologia o meio que vai possibilitar isso. Para Pflanzer, “alimentar a população do planeta não é e nunca foi uma tarefa fácil, tanto que até hoje milhões de pessoas passam fome. Mas isso não é devido à falta de alimentos: 1/3 do que produzimos vai para o lixo”.
Na visão do professor da Unicamp, “o ser humano sempre teve uma ligação direta com os animais” e será difícil abrir totalmente mão da produção de animais para consumo humano. Ele diz que é possível viver sem carne e leite, mas apenas com uma dieta planejada e acompanhamento médico e de nutricionistas – a vitamina B12 também precisa ser suplementada. “Qual proporção dos habitantes do planeta pode fazer isso? Poucos.”
Fonte: BBC News