O Brasil, e o Mundo, passam por tempos difíceis com uma constante repetição de imagens desoladoras de grandes prejuízos materiais e perdas de vida devido aos eventos climáticos extremos.
“Duvido, penso, portanto, sou,”
Do livro “Discurso sobre o método”, René Descarte, 1637
“Que braseiro, que fornalha!
Nem um pé de plantação,
Por falta d’água, perdi meu gado,
Morreu de sede, meu alazão.”
Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1947
O estado das coisas:
O Brasil, e o Mundo, passam por tempos difíceis com uma constante repetição de imagens desoladoras de grandes prejuízos materiais e perdas de vida devido aos eventos climáticos extremos. No nosso caso, ainda com as lembranças vivas e as consequências da tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul, fomos confrontados com as imagens de destruição pelo fogo e, além delas, quase 2/3 do país sentiu no próprio ar que respirava a vida carbonizada de milhões de hectares das nossas matas, plantações e da vida contida nelas que pereceu.
Importante não perder de vista que são duas faces da mesma moeda: o excesso de água que caiu no Sul foi a que faltou para toda a área e que resultou na formação de uma imensa área altamente suscetível aos incêndios. O fogo em si, ainda que possa ter causas naturais, mais provavelmente foi obra de incendiários, parte deles agindo por conta própria e sem uma agenda definida, mas certamente seguidos por oportunistas e, eventualmente, grupos com interesses variados. Todos, igualmente, criminosos. O fato é que foi a seca extrema que criou as condições para a magnitude da tragédia. A seca no Norte e Centro-Sul do Brasil, inclusive, seguem causando prejuízos e mantendo nossa vulnerabilidade a novos incêndios.
Como todo evento extremo climático, as enchentes gaúchas foram imediatamente conectadas às mudanças climáticas. Apesar de serem necessários estudos científicos complexos de atribuição para se afirmar que ela é singularmente causada pelo aquecimento global antropogênico1 (AGA), conquanto possam ser consideradas como um evento climático recorrente, a excessiva intensidade está ligada às maiores temperaturas do planeta. Em linha com isso, o ano de 2024 já tem hoje mais de 95,0% de chance de ser o ano mais quente nos últimos 120 mil anos. Vale lembrar que os últimos dez anos mais quentes, desde 1850, estão compreendidos entre 2014-2023.
O grande responsável pelos desvios do clima e, provavelmente, mais um ano recordista em temperatura tem registros desde 1500, mas começou a ser realmente compreendido nas últimas cinco décadas, é o El Niño. Basicamente, ele é um aumento de temperatura nas águas do Pacífico Sul, que começa perto do continente sul-americano na altura do Peru (de onde deriva o seu nome) e que causa alterações significativas nos padrões climáticos. Em que pese ele ser um fenômeno recorrente, a cada vez que ele ocorre em um planeta mais quente, maiores são os impactos. Além disso, aumenta-se a frequência da ocorrência de eventos extremos, sejam eles recorrentes amplificados ou inéditos com a assinatura da AGA.
Algumas pessoas, por exemplo, usaram a enchente de 1941 em Porto Alegre como evidência que se trataria de um evento cuja recorrência poderia ser prova da desconexão com o AGA. Pesa contra essa suposição o fato que, em 1941, houve 20 dias de chuvas ininterruptas, enquanto, desta vez, foram apenas três dias de chuva. Ainda mais relevante para a discussão é o fato que, dentre os maiores enchentes, três ocorreram no espaço de poucos meses, entre setembro de 2023 e maio de 2024, como pode ser observado abaixo, de acordo com as maiores cotas do Guaíba registradas, evidenciando o aumento da frequência dos eventos extremos:
Um dos maiores erros, todavia, de como muitos enxergam o desafio do AGA, e das mudanças climáticas causadas por ele, é considerar uma situação de tudo ou nada, ou seja, ou vamos resolver tudo definitivamente ou temos que nos conformar com um destino sombrio. Ao contrário disso, mesmo na hipótese que os esforços fiquem aquém das metas estabelecidas, quanto mais perto delas, menor será nosso sofrimento. Pelas amostras desse começo de anomalia climática2, dá para se ter uma ideia de que é bom não desperdiçar qualquer oportunidade de contribuir para a solução do problema.
Outro erro é achar que não existam caminhos em que seja possível transacionar de nossos padrões atuais para novos padrões sem que isso represente, necessariamente, prejuízo. Há exemplos para todos os setores emissores de relações ganha-ganha, mas nenhum setor tem mais oportunidades do que a pecuária.
Um excelente exemplo é o da produção de leite na Califórnia, para o qual, a seguir vamos resumir uma palestra do Dr. Frank Mitloehner, professor da UC Davis e diretor do Clear Center.
O exemplo que vem do Norte:
Ele iniciou por mostrar que, segundo o braço para alimentação e agricultura das Nações Unidas, a FAO, 11,0% das emissões globais de gases de efeito estufa viriam da atividade pecuária, principalmente do metano (CH4) entérico. Lembrou, todavia, que, ao contrário do CO2, que permanece 1000 anos (ou mais) na atmosfera, o CH4, permaneceria apenas por cerca de uma década. Em seguida, ele mostrou gráficos com vários cenários de emissão desses gases, mostrando que, pela menor meia-vida, apenas com a redução de CH4 a temperatura da terra pode se alterar no prazo que precisamos. Assim, como o CH4 é o principal gás de efeito estufa (GEE) da pecuária, trata-se de uma grande oportunidade para o setor passar da coluna de problema para a de solução.
Ao comentar sobre o “Desafio de 2050”, quando teremos que produzir alimentos para mais 9,0 bilhões de terráqueos, lembrou que só atingiremos esse objetivo com o uso de áreas marginais, nas quais a apenas a atividade pecuária é capaz de produzir alimentos. Ele complementou essa informação mostrando como o contingente de pessoas que se declaram de alguma categoria que evita o consumo de carne se mantém constante e baixo, bem como nos locais de maior crescimento populacional, a África e a Ásia, deve haver aumento de renda que deve resultar em aumento de consumo de produtos de origem animal.
Nesse ponto, ele lembrou que foi largamente anunciado que a FAO lançaria na COP 28, em Dubai, um relatório recomendando que os países deveriam estimular a transição para dietas baseadas em vegetais. Isso não aconteceu e, ao contrário, foi lançado um com o título “Caminhos para emissões mais baixas” no qual mudança na dieta seria uma das menos efetivas. As três mais efetivas seriam: aumento de produtividade, melhoramento genético e sanidade animal.
No caso da Califórnia, há o ousado objetivo do governo do estado em reduzir em 40,0% as emissões de CH4 do ano de referência 2013 até 2040. Para isso, o setor de produção de leite terá que reduzir suas emissões em 7,2 milhões T CO2-eq. Junto com outros colegas da UC Davis, o Prof. Mitloehner fez um relatório, com o título “Atendendo o chamado” em que mostram que esse setor pode reduzir entre 7,61 e 10,59 milhões de toneladas CO2-eq. De onde virão as reduções pode ser visto na tabela 1, abaixo.
Tabela 1.
Reduções estimadas para quatro intervenções em fazendas produtoras de leite na Califórnia.
Esses valores estariam próximos de uma das agências ambientais da Califórnia, cujo cálculo foi de 6,36 milhões toneladas CO2-eq, mas que não considerou o uso de aditivos.
Um aspecto importante ressaltado pelo Prof. Mitloehner foi que a abordagem das autoridades da Califórnia foi, diferentemente de empurrar regras e legislações aos produtores, ter trabalhado mais no incentivo para a adesão às novas formas de produção que vão ao encontro da redução dos GEE. No caso do uso dos aditivos, por exemplo, deverão ser pagos créditos de carbono. O setor já reduziu 2,5 milhões de toneladas CO2-eq, ou seja, 30,0% da meta. Como o principal item foi a instalação de digestores anaeróbicos, os produtores agora têm na produção de energia e biometano, que se tornaram novas fontes de renda.
A parte que nos cabe:
Esse exemplo que vem dos produtores de leite da Califórnia serve mais como prova que há caminhos para fazer a pecuária ser uma efetiva colaboradora na mitigação de efeito dos GEE com ganhos para o setor e a sociedade. Ainda que possamos replicar as estratégias por aqui para alguns produtores de leites, a parte realmente relevante das emissões do Brasil vem do gado de corte.
Se não temos tão grandes oportunidades com digestores anaeróbicos, uma vez que a maior parte dos dejetos no Brasil recicla naturalmente nas pastagens, no quesito “aumento de produtividade”, temos grandes oportunidades. Um dos melhores exemplos, na fase da cria, foi tema do artigo anterior, nesse mesmo espaço, no qual temos a oportunidade de manter a mesma produção de bezerros com 15,0 milhões de vacas a menos.
Mas há muitas outras maneiras de termos mais eficiência na produção de carne no Brasil, desde uma melhor implementação das pastagens (incluindo a escolha das espécies forrageiras) até uma precisão maior no ponto de abate em confinamentos, passando por uso estratégico de suplementação, uso de aditivos e uma infinidade de estratégias de intensificação sustentável. Uma grande parte delas tem custo marginal negativo, que é um jeito sofisticado de dizer que elas têm benefício: custo favorável, ou seja, há retorno para o capital investido. O uso de suplementos proteico de baixo consumo (0,1% peso vivo) em pastagens vedadas na seca, por exemplo, costuma dar retornos maiores do que R$2,00 para cada Real investido.
O que todas as práticas de intensificação sustentável costumam fazer é diluir a emissão dos GEE por quilograma de produto (carne, leite ou lã). Como também produzimos mais produto por animal, para uma mesma produção, podemos reduzir o rebanho. Há também, a oportunidade de reduzir a emissão individual do animal diretamente pela manipulação ruminal. Inclusive, não apenas com o uso de aditivos, mas, por exemplo, pelo emprego de leguminosas na nutrição, seja como banco de proteína, seja como em consórcio com gramíneas.
Na Califórnia, o governo estadual usou incentivos para acelerar as práticas com retorno econômico, como os biodigestores, e deve pagar créditos de carbono para os produtores usarem um aditivo que, usualmente, não melhora o desempenho, mas é bastante efetivo na redução de metano. No Brasil, falar em incentivos à pecuária hoje pode ser bem complicado, mas, há tantas oportunidades e tantos argumentos a favor, que é possível convencer a sociedade brasileira que o ganho final comum compensa esse esforço. Aliás, muito além disso, precisamos criar mecanismos que permitam a transferência de renda dos setores e regiões que realmente são os grandes poluidores para aqueles que, produzindo alimento sustentavelmente, podem ajudar a resolver o desafio da redução das emissões de GEE.
Um último ponto nesse tema: o Brasil tem um excelente exemplo de política pública que foi altamente eficiente em reduzir nossas emissões, o Plano ABC, que segue renovado como ABC+. É um caso de política pública barata e de alto impacto.
O que pode nos atrapalhar:
Baseado no mito do pecuarista ser avesso às inovações, alguém poderia apostar nisso como uma barreira, mas as últimas cinco décadas de adoção cada vez maior de tecnologia na produção pecuária, quando aumentamos mais de cinco vezes a produção reduzindo a área de pastagem, ficando mais do que justificado o uso da palavra “mito” nesta frase.
No caso específico do que envolve a pecuária e o AGA, contudo, foram criados alguns mitos que, compreensivelmente, ganharam guarida em parte relevante dos pecuaristas e outros atores do setor. Uma delas, a de que o setor não tem que se preocupar com a questão, inclusive, tem mais recentemente usado um excelente conteúdo do próprio Prof. Mitloehner como prova disso. No “Rethinking methane” disponível em vídeo na Internet, ele explica como o CH4 entérico faz parte de um ciclo biogênico e, portanto, não haveria emissão adicional de GEE na atmosfera. A interpretação é equivocada, por dois senões: (i) essa afirmação é verdade apenas caso do rebanho se mantiver constante; (ii) ela não reduz a participação do setor no cômputo dos GEE, que é do interesse de todos. Não usar as informações dele, como essa, no sentido de reduzir a importância do metano na crise climática, é uma das frases de destaque do Prof. Mitloehner na palestra referida na parte “O exemplo que vem do Norte”.
Para determinado grupo de pessoas no nosso setor, então, há certa resistência em aceitar fatos da ciência do clima. Também são dois os motivos principais: (i) ainda há muita desinformação, boa parte dela patrocinada por lobbies dos grupos de grandes poluidores que, inclusive tem como uma das estratégias inflarem as informações sobre o setor agropecuário como forma de desviar o foco e (ii) uma deliberada vontade de fazer sua própria interpretação, escolhendo acreditar apenas nas desinformações pontuais apresentadas e desconsiderando fatos cada vez mais evidentes e uma grande disponibilidade de fontes de informação confiáveis.
Hoje, uma das melhores maneiras de saber se a atual ciência do clima é confiável, não é por ter milhares de cientistas altamente capacitados trabalhando com apoio das sociedades nacionais de pesquisa de praticamente todo mundo, como a Academia Nacional Americana, e espalhados em inúmeros renomados centros de pesquisa, mas pelos resultados obtidos até aqui. Nesse ponto, os modelos que fazem as previsões climáticas são uma boa síntese de todo esforço e, portanto, o grau de acerto deles é uma boa forma de constatar em que ponto estamos. A boa notícia é que seus dados têm ficado consistentemente próximos dos dados reais há muito tempo. Isso é particularmente impressionante, pois o AGA inclui situações não vivenciadas e, por isso, desvios maiores seriam até bastante justificáveis. Nossa ciência climática, portanto, é algo a nos orgulhar muito.
Curiosamente, ainda há um grande contingente de fãs de membros da academia que, com fatos pontuais e, em geral, simplesmente errados, procuram provar a quadratura do círculo. Usando a mesma régua de acerto de previsões, como qualquer um que vai contra as evidências, fatos e leis físicas, eles seguem errando em suas previsões.
O que não podemos perder:
A mesma oportunidade identificada pelo Prof. Mitloehner é a que temos e, provavelmente, nossos ganhos possam ser maiores dos que ele apresentou. O ceticismo é essencial para o ser, com na versão completa e original da famosa frase de Descarte, que tem um “duvido” antes do “logo, sou”, que seria uma tradução mais correta do original em francês em vez do usual “logo, penso”. Duvidar da ciência do clima e da oportunidade da pecuária ser destaque na solução do AGA é mais do que natural: é desejável. Todavia, o ceticismo deve persistir apenas enquanto não houver evidências suficientes de que, o que poderia ser uma miragem, concretamente é um oásis ao nosso alcance no deserto. Nesse exemplo, persistir no ceticismo só vai nos levar a morrer de sede.
Assim, a proposta que deixamos é cada um fazer sua revisão em tanta coisa que já foi dita sobre o AGA e as mudanças climáticas nos últimos anos e, com o espírito aberto, checar quem acertou e quem errou, de preferência procurando entender os motivos. Repetir a dose para o envolvimento da pecuária na questão e as oportunidades que se apresentam. Um esforço bem-feito nessas duas frentes deve confirmar que as oportunidades existem e, quanto mais rapidamente as abraçarmos, melhor será para o setor e toda a sociedade.
Para a pergunta “O que eu ganho com isso?”, além de uma pecuária mais eficiente, capitalizada, também um futuro com menos dor e sofrimento. Como aquela descrita na estrofe da canção “Asa Branca” que abre esse texto. Em 1947, uma triste realidade do sertão nordestino; hoje, uma visão que começa a assombrar outras plagas.
¹Antropogênico = causado pelo homem.
²Estamos chegando perto de +1,5° C em relação a era pré-industrial. Os piores cenários são de +7º C até o final desse século.
Autor: Sergio Raposo de Medeiros
Fonte: Scot Consultoria
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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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