Segundo os dados divulgados pelos pesquisadores da Embrapa o agro brasileiro alimenta o mundo; Entretanto especialistas discordam do assunto!
A ideia de que o Brasil alimenta o mundo é muito cara ao agronegócio. O próprio presidente da República afirmou, em julho deste ano, que o “Brasil garante a segurança alimentar de um bilhão de pessoas ao redor do mundo”. Esse número aparece também em eventos, na boca de parlamentares e entre pesquisadores.
Em março, a Embrapa publicou um estudo com título “O Agro Brasileiro Alimenta 800 Milhões de Pessoas”, assinado pelos pesquisadores Elisio Contini e Adalberto Aragão.
Ao longo de suas nove páginas, o trabalho calcula a contribuição da produção brasileira de grãos e carnes bovinas em relação à produção mundial destas commodities e, a partir dos dados, estima que o Brasil seria responsável por alimentar cerca de um décimo da população do planeta.
O problema é que, na prática, a metodologia da pesquisa consiste em uma “regra de três” básica, onde as constantes são: população mundial, produção brasileira e produção global de grãos, enquanto o xis da questão é a “população alimentada pelo Brasil”.
Como o Brasil é responsável por cerca de 10% da produção mundial de trigo, soja, milho, cevada, arroz e carne bovina, os pesquisadores concluem que atualmente estaríamos alimentando 10% da população mundial, ou 800 milhões de pessoas —incluída a população nacional.
Entretanto, fontes ouvidas pelo Joio apontam inconsistências metodológicas na pesquisa, uma vez que desperdícios na cadeia produtiva, desigualdades de consumo e dados sobre insegurança alimentar não foram considerados.
“Confundiram alimento com ração, pressupondo que a população mundial poderia ser alimentada com soja e milho”, sintetiza o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo. “Ninguém come isso. A alimentação humana é muito mais diversificada e não está incluída nessa conta.”
Fome no Brasil e no mundo
Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e diretor-geral adjunto do Instituto Fome Zero, critica o fato de o trabalho considerar, logo em sua primeira linha, que toda a população brasileira está “alimentada adequadamente” pelo agronegócio.
“O último dado do Inquérito Vigisan mostra que 56% da população brasileira está em estado de insegurança alimentar”, afirma ele, em referência ao trabalho desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. “Não dá para dizer que você está alimentando o mundo se você mal alimenta a população do seu país.”
Belik também comenta a ênfase dada ao aspecto meramente produtivo, deixando em segundo plano outros fatores importantes: “A disponibilidade do alimento é um dos problemas”, diz. “Mas há um outro fator, mais importante até, que é o acesso à alimentação.”
“Colocar no mercado o equivalente a alimentação para 800 milhões é diferente de garantir que esse mesmo número de pessoas esteja consumindo aquela comida”, argumenta o professor.
Os dados mais recentes da FAO, publicados em abril de 2021, apontam que cerca de 927 milhões de pessoas se encontram em estado de insegurança alimentar grave no planeta. A cifra não foi levada em consideração no estudo.
Desigualdade
Logo em sua página dois, o trabalho da Embrapa coloca como pressuposto a “hipótese forte de que o consumo [de alimentos] seria uniforme no mundo”. Ou seja, considera que não há desigualdade na aquisição de comida. Nem entre diferentes países, nem entre as populações mais ricas e mais pobres de cada país.
Dados do ComexStat do Ministério da Economia mostram que a China responde por 73% das exportações brasileiras de soja, produto que representa mais da metade da produção agrária brasileira considerada no trabalho, com 135 milhões de toneladas.
Ao mesmo tempo, a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE mostra que as famílias brasileiras com rendimento superior a R$ 15 mil mensais comem o dobro de carne das famílias com rendimento mensal igual ou inferior a R$ 1.900. São quase 15 quilos a mais consumidos por ano, para cada membro do núcleo familiar.
Ração de bicho
Ouvido pelo Joio, o agrônomo Leonardo Melgarejo, membro da Sociedade Brasileira de Agroecologia, lembrou que o estudo utiliza um número limitado de culturas agrícolas como parâmetro.
“Ao dizer que o agro brasileiro alimenta 800 milhões de pessoas, levando em conta apenas a produção de soja, milho, trigo, cevada e arroz, ele supõe que essas pessoas comem apenas esses produtos”, afirma.
Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Milho (Abimilho), das 88 milhões de toneladas de milho produzidas no Brasil durante a safra 2020/2021, apenas dois milhões foram diretamente para o consumo humano, ao passo que 55 milhões viraram ração animal e 22 milhões foram exportadas.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram que a produção brasileira de soja no ano passado foi de 135 milhões de toneladas. De acordo o Sindicato Nacional da Indústria de Alimentação Animal (Sindirações), 17 milhões viraram ração, ao passo que outras 82 milhões de toneladas foram exportadas, segundo o ComexStat.
Pesquisador da Embrapa defende o trabalho
Elísio Contini está há quarenta anos na Embrapa. Atualmente chefe da Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da empresa, ele também integra o Conselho Superior de Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Conselho Nutricional e Alimentício do Fórum Econômico Mundial, além de ser professor convidado da Fundação Getúlio Vargas.
Em entrevista ao Joio, Contini defende o estudo publicado em março: “Eu acho que, dentro da metodologia que adotamos, esses são os dados. E dados são fatos.”
Para o pesquisador, a pandemia e a diminuição no rendimento das famílias explicam a aparente contradição entre aumento da fome e a safra recorde do Brasil no ano passado: “O problema é renda. A pandemia trouxe um fato novo, que é o desemprego. Desestruturou a economia do país.”
Como remédio, Contini defende a adoção de políticas públicas de distribuição de renda e ações de caridade da sociedade civil: “Estamos precisando de pessoas caridosas e do governo também ajudando, como tem ajudado, com Bolsa Família e auxílio emergencial”.
Questionado sobre perdas e desperdícios na cadeia de valor, o cientista gaúcho explica que, por não se restringirem ao Brasil, entendeu que não haveria necessidade de computá-los no estudo: “Tanto tem perdas aqui como perdas no mundo. Então, perdas por perdas, não quantificamos.”
‘Não existe mundo esperando para ser alimentado’
Timothy Wise é autor do livro Eating Tomorrow, que trata da disputa entre sistemas alimentares baseados no agronegócio e na agricultura familiar.
Ele diz que é arrogante a ideia de que o agronegócio brasileiro ou mesmo o agribusiness americano podem alimentar o mundo: “Não existe um mundo aí fora esperando para ser alimentado. Não existe ‘nós os alimentamos”.
“O que existe são cerca de um bilhão de pessoas que não têm renda ou recursos produtivos para se alimentar adequadamente”, diz.
“Não é errado constatar que o Brasil produz vastas quantidades de grãos e que esses grãos se transformam em carne, ao virarem rações para animais de interesse comercial”, explica. “O problema é achar que os pobres do mundo estão se alimentando desta carne.”
“A maior parte do alimento consumido na África é produzida pelos próprios africanos”, diz. “Geralmente por pequenos agricultores, que cultivam de modo mais sustentável e produzem uma diversidade de alimentos muito maior.”
Para o professor, “o estudo não faz as perguntas corretas, não usa os dados apropriados e sugere que precisamos aumentar a produção de commodities”. “E essa é a conclusão errada. Nós precisamos de muito menos desse tipo de produção”, conclui.
Destino manifesto do agro brasileiro
O estudo da Embrapa vem para reforçar um raciocínio muito repetido entre atores políticos e representantes do agro: o de que o Brasil tem o destino manifesto de alimentar o planeta, mantendo seu papel de economia primária baseada na exportação de commodities. O Joio mostrou na matéria “O Agro é Tech”, lançada em março deste ano, que representantes do chamado Agro 4.0 vêm falando na necessidade de incorporar tecnologias digitais à produção agrícola nacional de forma que, em 2050, o Brasil possa alimentar 40% da população mundial.
Outro exemplo da aparição desta ideia se deu no dia 28 de julho, quando a Secretaria Especial de Comunicação do Governo Federal (Secom) publicou um card com os dizeres “Dia do Agricultor: Alimentando o Brasil e o Mundo”.
A postagem, que depois foi apagada, também trazia a imagem de um suposto agricultor armado com um rifle em meio a uma plantação de soja.
Para o professor Belik, a propagação desta ideia de missão global serve para desviar o foco das críticas pela devastação ambiental empreendida em prol da agropecuária no país, justificando seus impactos ao meio ambiente.
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“É um fundo basicamente político”, afirma. “É como se eles dissessem ‘Olha, a gente tá devastando a floresta, aumentando as queimadas, mas isso tem um motivo nobre, já que alimentamos 800 milhões de pessoas'”.
O professor também classifica como perigosas as tentativas de dar “capa científica” a tal discurso: “Eu diria que do ponto de vista ético é muito irresponsável”.
Elisio Contini, da Embrapa, prevê que uma atualização do estudo deve ser lançada no ano que vem.
Fonte: Economia UOL