Abate de jumentos cresce 8.000% e espécie corre risco de desaparecer

Especialistas alertam que, mantido o ritmo atual de abate, a existência da espécie de jumentos no Brasil está ameaçada. O agricultor José Araújo de Souza decreta: “Quem tem o seu que o segure, porque o jumento vai acabar”; confira

Os jumentos, parte essencial da identidade rural e cultural brasileira, estão sob ameaça iminente de extinção. Cientistas e especialistas têm levantado sérias preocupações sobre o aumento exponencial do abate desses animais no Brasil, impulsionado pela demanda internacional por sua pele e couro. Essa situação crítica tem gerado debates, campanhas de conscientização e ações governamentais visando a proteção e preservação desses equídeos.

Na feira de animais de Cansanção, a 350 quilômetros de Salvador, três jumentos dóceis e aptos ao transporte de carga esperam na sombra por um novo dono. Ali vende-se de tudo quanto é animal que sirva ao sertanejo daquela terra seca, e o jegue já foi um dos mais populares. Mas, aproximando-se dos três espécimes, com chapéu de couro bem trabalhado, o agricultor José Araújo de Souza decreta: “Quem tem o seu que o segure, porque o jumento vai acabar!”

Fazenda Piedade, na zona rural de Euclides da Cunha, onde ficam jumentos separados para o abate. ALEXANDRE GUZANSHE

O jumento, jegue ou asno da espécie asinina chegou ao Brasil com os portugueses há cinco séculos e adaptou-se tão bem ao clima semiárido que se tornou símbolo do trabalho pesado no interior nordestino, “o maior desenvolvimentista do sertão”, como cantou Luiz Gonzaga. No entanto, começou a sumir da vista do sertanejo após um inusitado negócio com a China.

O país asiático tem interesse, principalmente, no couro do animal — matéria-prima para a produção do Ejiao, uma gelatina usada na medicina e em cosméticos chineses, que movimentou o equivalente a R$ 22 bilhões em 2018. Já a carne é um subproduto consumido no norte.

A China não consegue atender sozinha à demanda de criar até 10 milhões de jumentos por ano para o abate, por isso importa o animal de países da África e América do Sul. Nos últimos dois anos, o Brasil entrou com força nesse mercado.

Dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) revelam uma tendência alarmante: entre 2010 e 2019, o número de jumentos abatidos no Brasil cresceu 8.000%. Em 2019, foram abatidos 123.699 equídeos, quase o dobro em comparação com 2010. Esse aumento vertiginoso tem como principal impulsionador a exportação de peles e couros, especialmente para países como China, Hong Kong e Vietnã.

O Brasil nem sequer tem um milhão de jumentos para vender. O IBGE contabilizou 902 mil animais no país, sendo 97% (877 mil) no Nordeste. Mesmo assim, em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro à China, com meta de enviar 200 mil unidades por ano. Em um ano e quatro meses após o acordo, mais de 100.000 jumentos foram mortos nos três frigoríficos baianos autorizados pelo governo federal — nos municípios de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. Outros abatedouros registrados para a atividade estão em Estados onde há poucos animais para suprir o mercado. Se o ritmo de abate chegar à expectativa chinesa, a espécie pode desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste.

A redução drástica de jumentos ocorre porque sua cadeia é extrativista — ele é pego na natureza e morto. Não há produção estruturada, normas de criação, fiscalização de transporte ou medidas contra condições precárias, tampouco há uma contagem recente de sua população. Nela, há em média seis atravessadores, incluindo sertanejos, comerciantes, transportadores, fazendeiros ou arrendatários, donos de abatedouros e de empresas de logística aqui e na China.

Vala na Fazenda Santa Izabel, na zona rural de Euclides da Cunha. Parte da fazenda foi arrendada pelos chineses. ALEXANDRE GUZANSHE

No início, está o sertanejo nordestino, que vende jumentos soltos ou de seu próprio quintal por valor entre R$ 20 e R$ 50. Em alguns casos, até doa o animal que apenas gera gastos à família. É o caso de Leonardo, de 16 anos, que recolhia jegues sem dono para vendê-los. Na feira de Euclides da Cunha, a 300 km de Salvador, era conhecido como o jovem que levava animais para o abate. Na frente de colegas, garantiu que apenas ajudava um amigo no transporte. “Mal sabia o que estava fazendo”, disse envergonhado, arrancando risadas irônicas de quem estava perto.

Especialistas da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP) alertam que, mantido o ritmo atual de abate, a existência da espécie de jumentos no Brasil está ameaçada. A taxa de reprodução dos animais não é suficiente para compensar as perdas causadas pelo abate indiscriminado, especialmente quando se considera o abate clandestino, que não é registrado oficialmente.

A Bahia se destaca como um dos principais centros de abate de jumentos no Brasil, com 84.112 abates registrados entre 2017 e 2019. No entanto, os pesquisadores apontam que esse número pode ser ainda maior devido à ilegalidade da prática.

A preocupação com a preservação dos jumentos tem mobilizado diversos setores da sociedade brasileira. Campanhas de conscientização, como a iluminação especial da Câmara dos Deputados, têm buscado chamar a atenção para o problema. No entanto, é fundamental que haja uma ação coordenada entre governo, instituições e a sociedade civil para garantir a preservação dessa espécie.

Entenda melhor sobre os jumentos

jumento pega
Foto: Agro Bacuri

Os jumentos, também conhecidos como asnos ou burros, são mamíferos perissodáctilos da família Equidae. Originários do asno-selvagem-africano, foram domesticados por volta de 5.000 a.C., juntamente com os cavalos, e têm sido utilizados desde então como animais de carga e montaria. Possuem tamanho médio, focinho e orelhas compridas, e são encontrados em diferentes partes do mundo, adaptando-se a diversas condições ambientais.

Esses equídeos pertencem à mesma ordem dos cavalos, os perissodáctilos, e compartilham características físicas semelhantes. No Brasil, o termo “burro” pode se referir tanto ao asno quanto ao resultado do cruzamento entre asno e cavalo, chamado de “mula” no caso de ser fêmea e “muar” no caso de ser macho. Esse cruzamento gera animais com características de ambas as raças, como robustez, docilidade e, em alguns casos, maior velocidade.

Além de sua importância histórica e cultural, os jumentos desempenharam e ainda desempenham papéis práticos na agricultura e no transporte, especialmente no Nordeste, onde são amplamente utilizados. Sua resistência, adaptabilidade e força os tornam valiosos como animais de carga e tração. No entanto, como vimos, apesar de sua importância, os jumentos enfrentam ameaças crescentes, como o abate indiscriminado e a perda de habitat, o que coloca em risco não apenas a existência desses animais, mas também a diversidade ecológica e cultural do planeta.

Escrito por Compre Rural.

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ℹ️ Conteúdo publicado pela estagiária Juliana Freire sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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