A Copa do Mundo é nossa! Só que estamos falando da pecuária, das exportações, do rebanho e sustentabilidade!
De repente, a Copa do Mundo de novo! E a “pátria de chuteiras” segue azeda, com ameaça de greves, tentativa de tabelamento de preços, escândalos infindáveis, investimentos em compasso de espera, muita gente ainda sem trabalho e mais um rosário de notícias nada animadoras. E o mal humor tem sobrado até para o que ainda resta do nosso orgulho de sermos a única seleção de futebol pentacampeã e que participou de todas as Copas. Com esse cenário embaçado, muita gente defende que seria indevido voltarmos a nossa atenção aos nossos craques em busca do Hexa lá nos campos da Rússia.
Mas, deixar de aproveitar esse breve momento de alegria que tanto nos une em torno de algo que por “direito adquirido” temos tanto orgulho, como se fosse algo menor, não seria uma autoflagelação desnecessária?
Apesar da legítima preocupação quanto ao futebol desviar nossa atenção sobre o que de fato muda nossas vidas, creio ser perfeitamente possível não baixar a guarda, mas, opostamente, fazer com que nosso sucesso futebolístico seja usado como base para acreditarmos mais na nossa capacidade de sermos excelentes em tantas outras áreas, como já é o caso da nossa produção agropecuária.
No caso da agropecuária, o problema é que, ao contrário do futebol, a maioria dos brasileiros não sabe o quanto somos craques na arte de produzir alimentos. A pecuária bovina, particularmente sofre com desinformações que a tem colocado como, no máximo, um beque caneludo.
Como discutimos no texto de maio (https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/48550/onda-vegana-carne-de-mentirinha-insetos-no-cardapio:-a-pecuaria-vai-acabar?.htm), há uma tendência à redução do consumo de carne, especialmente pelos mais jovens que relacionam a pecuária com maus tratos aos animais, problemas ambientais (desflorestamento e mudanças climáticas) e risco à saúde.
A ideia nesta matéria é dar informações que desmistifiquem vários pontos sobre a pecuária brasileira, mostrando que nossa a carne é um alimento saudável, que os produtores brasileiros só têm motivos para tratar bem seus animais e que a pecuária pode ser uma aliada da preservação ambiental.
A carne bovina e a saúde humana
– A carne tem composição muito semelhante à do nosso próprio corpo, contendo todos os “blocos” necessários para nossa “construção”. Muitos dos nutrientes que o ser humano tem necessidade de ingerir, por não produzir ou por ter produção insuficiente, são componentes que ocorrem na carne (exemplo: aminoácidos, ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa e outros).
– Todos os principais guias de alimentação dos países desenvolvidos recomendam o consumo de carne bovina, assim como também o mais recente publicado no Brasil. Os europeus recomendam em torno de 100 g/dia. Assim na Terra, como no céu: a carne bovina faz parte da dieta dos astronautas que trabalham na Estação Espacial Internacional, há 400 km da Terra. Pela condição em que se encontram, são pessoas com as quais a saúde e a boa disposição são tão críticas como suas missões. Evidentemente, a preocupação com a correta alimentação delas é total, bem como é usado o estado-da-arte do conhecimento sobre nutrição humana para determinar o cardápio. Esse é um certificado de qualidade quase “de outro mundo” para a carne.
– A carne bovina ajuda a balancear a dieta: E esse é um dos motivos pelo qual ela sempre é recomendada. Por ter alta concentração de proteína e energia, a carne reduz a necessidade da inclusão de fontes de carboidratos na dieta, especialmente de amido. Esse é o componente principal de cereais como arroz e milho. O problema de consumo excessivo do amido é que ele estimula muito a produção de insulina, podendo induzir à resistência insulínica que leva à diabetes e outros problemas metabólicos.
– Gordura da carne é bem melhor do que falam: As recomendações de redução de consumo de carne bovina decorrem, principalmente, da sua gordura ser relativamente mais saturada do que carnes de frangos e suínos. O maior grau de saturação da gordura seria um fator de aumento do colesterol no organismo. Ocorre que no caso da carne, apesar de cerca de metade dos ácidos graxos serem saturados, algo em torno de um terço desses ácidos graxos saturados são de ácido graxo esteárico. O esteárico, na pior das hipóteses, é neutro em relação a aumentar o colesterol do consumidor. Como os outros 50% são de ácidos graxos insaturados, quase 70% dos ácidos graxos da carne, ou são neutros, ou ajudam na redução do colesterol.
– Uma ajuda para não abrir a geladeira à toa: A carne bovina ajuda a pessoa em regime de emagrecimento a manter a dieta de baixa caloria, portanto, ajudando no combate contra a obesidade.
– Mais da metade das exigências de proteína na dieta pode ser atendida pelo consumo de carne bovina: Além disso, trata-se de proteína de alto valor biológico, tanto por sua alta digestibilidade (94%), como sua composição em aminoácidos, cujo perfil atende muito proximamente as necessidades dietéticas. A carne bovina é mesmo um alimento extremamente nutritivo, conforme podemos ver na tabela1:
Tabela 1. Porcentagem de atendimento da ingestão diária de referência de 100 g de filé mignon magro cozido
A carne bovina e o bem estar
– Bem estar do pecuarista: No quesito bem estar animal, o maior interessado que seus animais não sofram estresse é o próprio pecuarista, visto que animais estressados produzem menos. Instalações adequadas, manejo racional dos animais, tratamentos minimamente invasivos e várias outras opções para dar conforto animal costumam compensar economicamente.
– Manejo racional: Ele nada mais é do que compreender melhor o comportamento natural do animal e aproveitar-se disso para facilitar o trabalho. Há casos de sucesso de implementação dele em fazendas. O gargalo está no treinamento dos peões, mas, segundo uma colega da área, a Dra. Maria Lucia Pereira Lima, da APTA (Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios) em Sertãozinho-SP, é exatamente nas fazendas com mais trabalho, que há facilidade de implantar o manejo racional, pois os envolvidos são “rendidos” pela técnica ao começar a dar tempo de fazer as atividades no curral após sua implementação.
– Abate sem dor: O abate nos frigoríficos brasileiros é regulamentado por lei de forma a evitar o sofrimento e causar morte instantânea. Além da questão ética, há interesse comercial para que seja assim, afinal, o estresse antes da morte atrapalha a qualidade da carne.
– Indústria da vida: Envolver o abate de animais é um dos grandes motivadores para que, uma população cada vez mais urbana e que gasta bilhões com seus pets, mude seus hábitos alimentares, tirando produtos de origem animal da dieta.
Acaba virando um assunto delicado, especialmente para meninas e adolescentes, em geral, sensíveis ao tema. A mesma urbanóide que se encanta com uma paisagem natural e torce para ver uma bela onça, quer apagar da sua memória o momento que essa mesma onça caça sua refeição e a recrimina por ela ter matado aquele cervo.
Essa urbanóide paga exorbitantes sobrepreços em produtos orgânicos e naturais, convicta que ser natural é cool, mas é incapaz de compreender que naturalmente há uma teia alimentar nas quais seres vivos consomem outros seres vivos, pelo menos até que uma mutação permita algum ser vivo se alimentar de pedras.
A espécie humana evoluiu comendo vários tipos de alimentos (somos onívoros) e é natural que comamos plantas e animais. Para evitar ter que coletar vegetais no campo e o trabalho arriscado da caça, respectivamente, criamos a agricultura e a pecuária. As plantas podem viver de luz e “terceirizamos” para o boi a coleta da luz em forma de capim. É a energia da vida que flui de um ser para o outro e, seja de que reino for, vegetal ou animal, um morre para que o outro possa viver. Vegetais tem sistema imunológicos, comunicam-se entre si e estudos mostram até capacidade de visão para algumas espécies! Assim, o azar da alface é que ela não grita!
A carne bovina e o ambiente
– Desacoplamento pecuária-desmatamento: No caso das preocupações ambientais, o Brasil é um bom exemplo de como a pecuária pode sair da coluna do “problema” para fazer parte da solução, especialmente ilustrados por duas constatações: (1) Na primeira década do século XX, houve um grande crescimento do rebanho bovino na região da Amazônia legal ao mesmo tempo que o desmatamento caiu vertiginosamente (figura 1) e (2) o aumento de produtividade responsável pelo desacoplamento da binômio pecuária x desmatamento se deu pelo aumento de uso de tecnologia e integrações, reduzindo a pegada de carbono da atividade.
Figura 1. Redução do desmatamento na Amazônia entre 2004 e 2012, período em que a região teve significativo aumento de rebanho. Entre 2006 e 2015 os estados do Mato Grosso, Pará e Rondônia que fazem parte do bioma amazônico tiveram aumento de 9,18%, 6,38% e 11,40% respectivamente. Nos últimos anos, o desmatamento voltou a subir e tem oscilado entre 6 a 7 mil hectares por ano.
– Desmatamento e especulação imobiliária: Todavia, há, sim, ligação entre pecuária e desmatamento, mas isso é uma questão histórica que, na verdade, nos traz uma dívida aos animais pois, graças a eles conseguimos a ocupação dos espaços territoriais distantes do litoral.
Hoje, quando sabemos que as matas passaram a valer mais em pé do que abertas, isso se tornou um problema. Deve-se ter em mente que a pecuária é apenas um meio, pois o objetivo mesmo é ganhar com a especulação imobiliária. Se não houver o boi, outra atividade tomará seu lugar e a especulação persistirá. O importante é garantir o desmatamento ilegal zero, um interesse que deve ser de todos os brasileiros, requerendo forte ação do Estado em coordenação com os diretamente envolvidos e sob a vigilância da sociedade de forma geral.
– Nossa carne “orgânica”: Uma das características da nossa pecuária é ser feita com muito pouco uso de insumos, motivo pelo qual raramente há alguma ocorrência de contaminantes na carne brasileira, ainda que exportada para mais de uma centena de países que as fazem passar pelos mais variados testes em busca de problemas.
– Pasto produtor de água: Pastagens bem manejadas são excelentes produtoras de água. Basta que elas mantenham o solo bem coberto, o que evita erosão e facilita a infiltração da água. A infiltração também é auxiliada pelo vigoroso e profundo sistema radicular das nossas forragens tropicais. Soma-se a isso a vantagem dessa produção ocorrer em um ambiente menos exposto aos contaminantes em relação às áreas agrícolas e vê-se que temos boas vantagens nesse campo também.
– A pastagem é a heroína dos sistemas integrados: Para as pessoas que precisam de boas notícias, recomendo que se informem sobre os sistemas integrados de produção: (I) a integração lavoura-pecuária, (II) a pecuária-floresta (ou silvipastoril) e a que junta essas duas, (III) a integração lavoura-pecuária-floresta.
O Brasil possui mais de 11 milhões de hectares com as integrações e os benefícios são muitos. Em destaque, a agricultura traz vantagens na fertilidade da área, a pecuária nas qualidades químicas e físicas do solo e, o componente florestal, conforto térmico aos animais.
Nos sistemas silvipastoris há, inclusive, um protocolo criado por colegas da minha unidade que vale à pena conhecer, a “Carne Carbono Neutro”¹, em que o componente árvore mais do que zera o balanço de emissão de metano pelos animais. Todavia, aqui, o principal é mostrar como um dos principais motivos do sucesso da integração é o componente capim, pois é ele quem restaura o carbono do solo. Veja o exemplo da figura 2 abaixo:
Figura 2. Alteração no conteúdo de carbono (C) no solo (como matéria orgânica) na sucessão de pastagem-soja-pastagem. A soja foi cultivada por 13 anos e reduziu o C no solo. Após nove anos de cobertura com pastagem, o C no solo voltou a subir, terminando com um valor maior do que o original. (Fonte: adaptado de Sousa et al., 1997)²
Esse restauro de C, determinado pela pastagem, é fonte de grandes melhorias na capacidade dos solos em reter nutrientes e água, além de melhorar muito sua estrutura física. Assim, na sinergia dos sistemas integrados, a pastagem aproveita a fertilidade residual das culturas, cresce vigorosamente até as últimas chuvas do outono, tornando-se um pasto de excelente qualidade que gera excelentes ganhos na seca e, de quebra, melhora o solo permitindo produções ainda melhores na cultura agrícola subsequente!
Temos um potencial para que esses sistemas se expandam para mais 10 a 20 milhões de hectares, dependendo do otimismo de quem prevê. Há muito o que ganhar com esses sistemas, os quais também colocam a pastagem na coluna das “soluções” para a tão almejada sustentabilidade ambiental.
Haveria muito mais a falar sobre esses temas e, também, outros importantes ficaram de fora. Espero que eles ajudem a melhorar o debate em torno da pecuária, no que ela tem sido cobrada pela sociedade em geral. Muito importante observar que muito das boas notícias aqui partem da premissa que o trabalho é bem feito. Por exemplo, pastagens bem manejadas são produtoras de águas, mas pastagens mal manejadas são responsáveis por erosão e assoreamento de rios e outros corpos d´água.
Assim, da parte de todos nós, atores do setor, precisamos continuar nossa trajetória de melhorias em todas essas áreas, mesmo porque, até onde já estamos bem, há boas chances de melhorar ainda mais. Que a ciência seja nossa defesa “classuda”, mas que a gente continue no campo a jogar para frente em busca de mais gols e a alegria que eles nos dão.
¹ http://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/158193/1/Carne-carbon-neutro.pdf ,
² SOUSA, et al. Eficiência da adubação fosfatada em 2 sistemas de cultivo em latossolo de Cerrado. In: Congr. Bras. Ciência do Solo, 26, 1997.
Fonte: Scot Consultoria