
Sim, isso é bem possível, diz estudo de um professor do Insper. Se o monitoramento não for bem feito, uma lei pode ter efeito contrário ao desejado.
Uma lei pode provocar efeitos opostos àqueles esperados? Infelizmente, a resposta parece ser sim, conforme indica um estudo de Bruno Varella Miranda, professor assistente do Insper, e Gustavo Magalhães de Oliveira, pesquisador na Universidade de Bonn, na Alemanha. O caso estudado pela dupla foi a implementação dos TACs (termos de ajustamento de conduta) em uma amostra de cidades brasileiras na região amazônica entre os anos de 2006 e 2017.
Os TACs são acordos pelos quais os abatedores de gado se comprometem a não comprar animais de criadores que violem as leis ambientais — ou seja, criem gado em áreas desmatadas ilegalmente.
Porém, ao analisarem os dados oficiais, os pesquisadores observaram que a assinatura dos acordos levava a um aumento de área desmatada, não a uma diminuição. “Nós esperávamos uma diminuição do desmatamento, de modo que o resultado nos surpreendeu”, afirma Bruno Miranda, do Insper. O estudo, “Assessing the performance of voluntary environmental agreements under high monitoring costs: Evidence from the Brazilian Amazon”, foi publicado no periódico Ecological Economics.
A partir desse achado, os autores passaram a tentar entender os motivos pelos quais o acordo poderia levar ao resultado oposto do esperado. “O combate ao desmatamento tem dois desafios básicos”, aponta Bruno.
“O primeiro é que a floresta tem milhões de hectares, uma área imensa de difícil monitoramento.” No caso específico do gado na Amazônia, esclarece Bruno, “o Ministério Público parte de uma posição desfavorável, porque o custo de monitoramento é muito alto: a cadeia de produção da carne, desde a criação do animal até o seu abate e a distribuição, é composta por muitos elos”. Só nas fases de criação, do nascimento até a engorda final, é possível que o gado passe por quatro ou cinco propriedades diferentes.
A questão crucial é quem vai arcar com os custos do monitoramento: o governo, por meio dos nossos impostos? Os abatedouros? Os criadores? Os supermercados? “A ideia de um acordo como o TAC é transferir grande parte dos custos de monitoramento para os abatedouros”, explica Bruno.
Mas aí entra o segundo problema: a multiplicidade de regras e políticas públicas, muitas vezes contraditórias entre si. “Um exemplo de incentivo contraditório historicamente presente na Amazônia diz respeito às leis fundiárias. Por um lado, há limites para a quantidade de terra que você pode desmatar na Amazônia. Por outro lado, políticas de reforma agrária tendem a se basear na dicotomia entre terra produtiva e improdutiva, criando uma situação em que uma área deixada ao natural pode ser vista pelo Incra, o órgão responsável pela reforma agrária, como não produtiva.”
Isso cria um ambiente institucional complexo, em que cada regra tem potenciais efeitos sobre as outras. “Por exemplo, há estudos recentes demonstrando que o aumento do desmatamento na Amazônia está ligado ao desenho de políticas de oferta de crédito”, observa o professor do Insper.
Ora, por que então não criam regras para coibir a concessão de crédito que se destine ao desmatamento? Elas existem, mas esbarram — de novo — no custo de monitoramento: quem garante que o produtor que recebe o dinheiro respeita as leis ambientais em sua propriedade?
“Possivelmente o banco infere que, se o produtor está vendendo o seu gado para um abatedouro que assinou um TAC, alguém já está monitorando as práticas dentro da propriedade”, diz Bruno. Nesse sentido, é como se o TAC fosse um selo de “bom comportamento”, legitimando a participação de determinados produtores no mercado.
E esta é a principal hipótese de Bruno e Gustavo para o efeito negativo dos TACs sobre o desmatamento em seus anos iniciais. De fato, tanto o volume de crédito quanto o número de contratos de empréstimo aumentam após a assinatura do TAC. O pesquisador frisa, no entanto, que outros estudos são necessários para a plena compreensão desse mecanismo. “Por exemplo, faltam trabalhos que busquem explicar como se dá a concessão de crédito na Amazônia no nível do relacionamento entre gerentes e produtores”, lembra Bruno.
Além disso, os autores fazem questão de assinalar que a análise se refere aos primeiros anos do TAC, cobrindo um período que vai até 2017. “Estudos acadêmicos buscam extrair lições mais gerais para a adoção de políticas”, afirma o pesquisador. O trabalho de Bruno Miranda e Gustavo Oliveira chama a atenção para duas questões específicas: a importância de avaliarmos o nível de complementaridade entre regras no mundo real e como a distribuição dos custos de monitoramento de uma política pode afetar o seu desempenho.
“A gente tende a achar que a solução para as lacunas regulatórias é criar mais regras”, aponta Bruno Miranda. “O que o nosso estudo mostra é que, num mundo em que os custos de monitoramento são positivos, uma nova regra pode acabar permitindo que indivíduos oportunistas participem do jogo.” Afinal, explica o pesquisador, “se eu crio uma regra e sou incapaz de monitorá-la, na prática posso estar dando um atestado de bom comportamento mesmo para quem não a respeita”.
O problema é que tal “atestado” pode ser usado para obter benefícios mais amplos. “Quando um produtor é capaz de argumentar que está produzindo em uma área coberta por um acordo ambiental voluntário, possivelmente aumentará a probabilidade de obter crédito ou vender seu produto mesmo que, na verdade, não siga as recomendações do acordo.”
Se o monitoramento de uma regra ambiental é tão difícil, é porque seus custos podem ser consideráveis. E isso implica que, no mundo real, qualquer política traz o desafio de decidir como tais custos serão distribuídos. “Quando você tem um complexo de políticas com altos custos de monitoramento, lacunas em uma das políticas podem prejudicar o sistema institucional inteiro”, afirma Bruno Miranda. Por isso, continua o pesquisador, “regras claras para a divisão dos custos de monitoramento devem estar previstas na formulação de uma política ambiental, se possível considerando quem se apropria do valor criado pelas transações que afetam diretamente o meio ambiente naquele caso”. Sob essa lógica, o Estado seria apenas um dos protagonistas.
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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira
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