Para responder à pergunta, primeiramente, será apresentada uma visão mais abrangente no tempo e no espaço sobre a questão do preço dos alimentos, seus efeitos sociais e o papel do agronegócio.
Não, o agronegócio não é o vilão da inflação. Nos próximos parágrafos, são apresentados alguns elementos e dados sobre essa questão, que explicitam a complexidade do cenário e desmistificam essa visão. Trago também para o início do texto algo que será abordado novamente no final: independentemente das causas, o aumento dos preços domésticos dos alimentos existe e é muito punitivo, especialmente aos mais pobres, exigindo ações urgentes para a proteção daqueles (muitos, diante da conjuntura atual) que têm seu direito básico à alimentação adequada violado.
Para responder à pergunta proposta, primeiramente, será apresentada uma visão mais abrangente no tempo e no espaço sobre a questão do preço dos alimentos, seus efeitos sociais e o papel do agronegócio. Então, serão discutidas as causas por trás da intensa aceleração atual dos preços agropecuários domésticos, focando na diferenciação entre os movimentos observados e as causas que estão na raiz desses movimentos. Por fim, será abordada uma questão central, da diferença entre aumento de preços e aumento de lucros no setor produtivo.
Até meados dos anos 1980, o Brasil era importador líquido de alimentos, chegando a ser beneficiário de ajuda externa e enfrentava com frequência situações de insuficiência de oferta alimentar. Era preciso modernizar a agropecuária nacional pouco competitiva e torná-la produtiva o suficiente para garantir a oferta de alimentos para a população que crescia e se urbanizava no País.
Isso foi feito por um conjunto de ações, realizadas inicialmente sobretudo pelo setor público e com foco em avanço tecnológico. Os resultados dessas ações, em termos de aumento de produção agropecuária, foram espetaculares. De 1974 a 2020, a produção de grãos (arroz, feijão, milho, soja e trigo) multiplicou por quase 7; o rebanho bovino aumentou 136%, o suíno, 20% e o de galináceos cresceu 440%.
E essa expansão ocorreu sem pressionar na mesma magnitude o uso da terra – a área plantada com os mesmos grãos foi multiplicada por 2,3 e a área com pastagens em 2017 era apenas 3,5% maior que a de 1970². Diversos trabalhos acadêmicos mostraram que a produtividade tem sido o elemento-chave para a expansão da agropecuária brasileira, tal que essa expansão é marcada por expressivos efeitos “poupa-terra”, ou, em outras palavras: para alcançar a produção agropecuária observada em 2015, sem os ganhos de produtividade obtidos de 1990 em diante, 366,0 milhões de hectares a mais teriam sido necessários (43% do território nacional).
Essa evolução teve muitas e relevantes consequências positivas. De importador líquido o Brasil se tornou um grande exportador agrícola, com superávit comercial suficiente para compensar o déficit de outros setores e contribuindo para aliviar problemas de segurança alimentar ao redor do mundo. As informações apresentadas a seguir evidenciam as consequências positivas dessa evolução internamente para as famílias brasileiras, em que se tem o ponto crucial para a discussão desse texto.
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A participação das despesas com alimentação nas despesas de consumo das famílias caiu consistentemente nas últimas décadas: de 30,61% para 24,23% entre 1974/1975 e 1987/1988, para 23,57% em 1995/1996, 21% em 2002, 20% em 2008 e então 17,5% em 2018 (ROCHA, 1995; CASTRO; MAGALHÃES, 1998; POF-IBGE). Na prática, essa redução relativa dos gastos que são destinados à alimentação significa que as famílias brasileiras puderam diversificar o seu consumo, e destinar uma parte maior de suas rendas a transporte, moradia, saúde, educação, etc.
Trata-se de um movimento muito positivo e para o qual o agronegócio contribuiu sobremaneira, por meio da ampliação da oferta de alimentos a preços acessíveis. O aumento (bem modesto) da renda per capita média das famílias, além da urbanização e de mudanças de hábitos, também são fatores que explicam esse resultado.
Usando dados do IPCA-IBGE (e do INPC-IBGE para até 1997), tem-se que a inflação brasileira acumulou alta de 307% de 1995 a 2018. Para o grupo de alimentação no domicílio, o aumento foi similar, de 308%. Para outros grupos importantes na cesta de consumo das famílias, como habitação e transporte, as elevações foram de 417% e 360%, respectivamente, acima do que se observou para os alimentos nesses 24 anos. Para outros grupos de peso menor, como artigos de residência e vestuário, as variações foram menores (99% e 191%, respectivamente). Esse foi o cenário geral antes que a aceleração atual dos preços agropecuários iniciasse em meados de 2019.
Além de observar o panorama no Brasil ao longo do tempo, é interessante ampliar a visão através do espaço. E como a situação do Brasil se compara a de outros países? Quando comparada a participação dos gastos alimentares nas despesas das famílias entre diferentes países, o Brasil se posiciona mais próximo dos países europeus do que dos seus pares ou vizinhos.
No Brasil, a informação de 2016 era de que 16% dos gastos domiciliares eram destinados ao consumo de alimentos; segundo a mesma fonte, para Portugal, Espanha, França e Itália, por exemplo, as participações eram de 17%, 14%, 13% e 14%, respectivamente; na China, Índia e África do Sul, eram de 22%, 30% e 19%, respectivamente, enquanto na Argentina, Bolívia e Peru, as parcelas superavam os 25%.
Logo, nota-se que o agronegócio não parece contribuir para uma situação de insegurança alimentar no País, pelo contrário. Esse desempenho do setor, somado a outros fatores e ao esforço político com a campanha Fome Zero, por exemplo, culminaram na retirada do Brasil do mapa da fome da FAO em 2014. A fome no Brasil era então um problema localizado, e não mais um problema nacional, conforme apontado por Rafael Zavala, atual representante da FAO no Brasil, em entrevista.
Mas, desde então, a situação voltou a se deteriorar; inicialmente, devido ao aumento da pobreza e aos cortes de orçamento em programas voltados a essa questão, decorrentes da recessão iniciada em 2014; e atualmente, agravada pelo novo e intenso aumento do número de pobres em decorrência da crise desencadeada pela pandemia concomitante à forte alta dos preços de produtos básicos essenciais no consumo, entre eles, os alimentos.
Parte desse aumento dos preços domésticos de alimentos vem de uma conjuntura global não específica do Brasil. Os preços internacionais agropecuários em dólares tiveram alta de cerca de 30% na comparação entre os períodos de janeiro a setembro de 2021 e de 2019. Em linhas gerais, isso resulta do aumento da demanda global – com a retomada do crescimento nas economias e os efeitos da Peste Suína Africana na China – combinado a questões que restringem a oferta, como as interrupções nas cadeias de suprimentos e variados efeitos climáticos adversos em importantes países produtores agropecuários.
Mas, na mesma comparação (janeiro a setembro de 2021 frente ao mesmo período de 2019), os preços agropecuários em Reais no Brasil, medidos pelo IPPA-Cepea, subiram 92% em termos nominais. A expressiva desvalorização do Real, de 37% nesse período, turbinou o efeito inflacionário da alta internacional dos preços dos alimentos.
No passado recente, durante o boom das commodities de 2003 a 2011, isso não aconteceu porque as expressivas exportações de minérios e produtos agropecuários pelo Brasil a altos preços internacionais gerou uma crescente entrada de divisas e uma expressiva valorização do Real, que amenizou o efeito do aumento dos preços internacionais sobre os preços domésticos (e a inflação).
Já no período atual, o comportamento do dólar não tem sido guiado apenas pela sua oferta e demanda, mas influenciado por fatores políticos e institucionais. Além do comportamento do dólar, o impacto do auxílio emergencial sobre a demanda doméstica de alimentos também foi importante para explicar as elevações verificadas.
Nesse cenário, o consumidor brasileiro tem se deparado com alimentos mais caros nos supermercados e parece intuitivo atribuir à alta da inflação ao aumento de preços de determinados produtos. Mas, como mostrado em Barros et al. (2021), um aumento, por exemplo, do preço da carne ao consumidor poderia hipoteticamente resultar exclusivamente da alta do dólar, que encareceria os combustíveis, implicando em elevação dos fretes, encareceria as rações, elevando o custo de produção na pecuária e tornaria as exportações mais atrativas, limitando a disponibilidade interna.
Os autores mensuraram, então, os fatores realmente responsáveis pela inflação de alimentos em 2020, ou as causas que estão na raiz do aumento, e encontraram que parte relevante da carga inflacionária atribuída aos preços agropecuários (IPPA) deveu-se às elevações na taxa de câmbio, no diesel e nos preços internacionais.
Demanda global, interrupções nas cadeias suprimentos, clima, câmbio e diesel, os principais fundamentos para a alta atual dos preços dos alimentos no Brasil, estão todos fora do controle do produtor agropecuário brasileiro. Além disso, para muitos produtores, a alta dos preços não tem significado aumento de rentabilidade. Um aumento de preço do produto favorece o produtor se a alta dos custos não ocorrer em uma intensidade ainda maior.
Na pecuária, essa situação é atualmente muito evidente. Os preços do boi gordo, do suíno vivo (São Paulo) e do frango (congelado) aumentaram, respectivamente, 101%, 57% e 53% entre 2019 e 2021, considerando-se os períodos de janeiro a setembro. Ao mesmo tempo, os preços do bezerro e do milho, principais itens do custo de produção, subiram 121% e 146%, respectivamente. Na agricultura, os maiores preços de fertilizantes, defensivos, combustíveis, entre outros, também impulsionam o custo de produção.
Nessa situação em que os preços dos produtos e os custos estão em alta, os resultados econômicos obtidos são muito heterogêneos entre os estabelecimentos e é praticamente impossível generalizar. Mas, mantém-se o ponto central para o debate desse texto: o cenário é mais complexo do que a análise dos preços no supermercado permite imaginar, e muitos produtores não estão se beneficiando com a inflação dos alimentos.
Por fim, sejam quais forem as causas, sabe-se que a conjuntura atual tem graves consequências para as famílias mais pobres. De um lado, tem-se a taxa de desemprego em 14,1% da força de trabalho (equivalente a mais de 14 milhões de pessoas desocupadas), e de outro, uma inflação que é tanto maior quanto menor a faixa de renda. Segundo informações do Ipea, a inflação acumulada em 12 meses em agosto de 2021 era de 10,63% para as famílias de renda muito baixa, ao passo que era de 8,04% para as famílias de renda alta.
A situação atual no Brasil tem tamanha gravidade por conta de uma condição preexistente de pobreza (agravada pela crise iniciada em 2014 e então pela pandemia), que não recebe a atenção que merece da política pública, e não da ineficiência da agropecuária brasileira. Para as milhões de famílias em situação de pobreza, crônica ou transitória, o aumento do preço dos alimentos verificado não pôde ser absorvido no orçamento e, com isso, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar leve e moderada e em situação de fome aumentou expressivamente.
De acordo com relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), 19 milhões de brasileiros enfrentaram a fome em 2020. Para essas pessoas, não importam as causas e não é possível pensar no médio prazo. Ações urgentes de proteção social são cruciais até que a situação se normalize, tanto programas que envolvam transferências de renda bem planejadas e com valores não defasados, quanto outros que contribuem para a erradicação da fome.
Fonte: Cepea