Novos poderes da Funai: o indigenista e o poder de polícia

É importante lembrar que, o chamado “indigenismo” é considerado como um movimento político e social, com objetivo de promoção e proteção dos direitos das populações indígenas.

Com grande preocupação devemos comunicar novidades na legislação relacionada à política indigenista do governo: a carreira de indigenista e o poder de polícia da Funai.

A primeira novidade tem relação com a Lei Federal 14.875, sancionada e publicada em 31/05/2024, que criou carreiras de Especialista em Indigenismo e de Técnico em Indigenismo na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

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A nova lei estabelece que são atribuições do cargo de Especialista em Indigenismo a promoção e defesa dos direitos assegurados pela legislação brasileira aos povos indígenas, bem como a sua proteção e a melhoria de sua qualidade de vida; a realização de estudos direcionados à demarcação, à regularização fundiária e à proteção dos territórios indígenas; o planejamento, organização, execução e avaliação de atividades inerentes à proteção territorial, ambiental e cultural e dos direitos dos povos indígenas; dentre outras atribuições.

Ainda segundo a lei, são atribuições do cargo de Técnico em Indigenismo, o planejamento, organização, execução e avaliação de atividades inerentes ao indigenismo, bem como apoio técnico e administrativo especializado a essas atividades, também a orientação e controle de processos direcionados à proteção e à defesa dos povos indígenas, incluindo algumas outras atribuições.

A segunda novidade é o Decreto nº 12.373, de 31 de janeiro de 2025, que regulamenta o exercício do poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e levanta questões relevantes acerca dos potenciais riscos e dos possíveis excessos.

Do ponto de vista da constitucionalidade, a previsão de que a Funai exerça o poder de polícia sobre as terras indígenas encontra respaldo no princípio da proteção dos direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios, pois a Constituição prevê necessidade desta garantia.

É importante lembrar que, o chamado “indigenismo” é considerado como um movimento político e social, com objetivo de promoção e proteção dos direitos das populações indígenas, por isso, embora a especialização da Funai seja importante para proteção de direitos indígenas, é preocupante sob o ponto de vista da “imparcialidade” na análise de processos de demarcação, que fica prejudicada pelo evidente interesse no resultado destes processos.

O mesmo questionamento surgiria em opinião contrária, caso a demarcação de terras e o poder de polícia pertencessem ao Ministério da Agricultura e Pecuária.

Importante comentar que desde 2014 está tramitando no Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária (ACO) no. 2323, ajuizada pelo estado de Santa Catarina, argumentando que não é possível aceitar exclusividade da Funai para demarcação devido ao conflito de interesses, já que possui dever legal de defesa dos interesses indígenas (art. 1º e incisos, Lei Federal no. 5.371/1967), sendo que na Constituição Federal (art. 231) registra que compete “à União demarcá-las” e não necessariamente a Funai.

E é neste contexto que o decreto do poder de polícia da Funai, apresenta riscos de interpretação e aplicação que podem resultar em abusos de poder, pois a concessão de poderes amplos à Funai, como a interdição de acessos, retirada compulsória de terceiros e apreensão ou destruição de bens utilizados em infrações, tudo isso de maneira cautelar, sem um devido processo administrativo, pode gerar supressão de direitos de terceiros e até conflitos de competência com outros órgãos de segurança pública.

Aliás, para início de conversa, há uma divergência conceitual do que seriam “terras indígenas”, já que para a Funai, mesmo as terras “em estudo”, ou seja, sem a finalização do processo de demarcação já seriam terras indígenas, justificando atuação deste poder de polícia.

Lembrando que até 2023, com a vigência da Instrução Normativa 09/2020 da Funai, o documento chamado Declaração de Reconhecimento de Limites, só considerava como terras indígenas aquelas que possuíam limites homologados por decreto presidencial, que é a última etapa do processo de demarcação.

A instrução normativa de 2020 foi revogada em 09/08/2023 na nova presidência da Funai, por meio da Instrução Normativa 30/2023, restringindo a posse e propriedade de imóveis ainda não homologados como terras indígenas, gerando já conhecidas sobreposições no Cadastro Ambiental Rural, impedimento de certificação de georreferenciamento e bloqueios de crédito bancário ou comercialização, agora também com um questionável e parcial poder de polícia nestas áreas.

Em outras palavras, a Funai poderá adentrar em imóveis particulares, aplicando medidas cautelares de interdição de acessos, retirada compulsória de pessoas, apreensão ou destruição de bens, tudo isso sem critérios objetivos na legislação, o que já traz risco de arbitrariedades, especialmente em situações de disputas fundiárias.

Além disso, a implementação das medidas previstas no decreto depende da atuação de agentes da Funai, que não possuem atribuição policial propriamente dita. A necessidade de colaboração com órgãos de segurança pública, como a Polícia Federal e as Forças Armadas, pode levantar questionamentos sobre a autonomia da fundação e a efetividade de suas medidas.

Outro ponto crítico refere-se à previsão de sanções para a utilização imprópria da imagem dos povos indígenas sem a devida autorização. Embora a proteção cultural seja um direito fundamental, a definição vaga do que constitui uso impróprio pode gerar insegurança jurídica e restringir indevidamente a liberdade de expressão e de imprensa, senão interpretações excessivamente restritivas ou subjetivas por parte da Funai.

Por fim, o decreto também traz preocupações quanto à falta de previsão expressa de mecanismos de controle e revisão das decisões tomadas no exercício do poder de polícia, pois a existência de instâncias para impugnar atos da Funai é essencial para evitar excessos e garantir que a aplicação das medidas respeite os princípios do devido processo legal, ampla defesa e proporcionalidade.

Portanto, o risco é que a sobreposição de interesses comprometa a isenção, resultando em conflitos administrativos e questionamentos judiciais sobre as decisões tomadas, sem mecanismos de controle e transparência, comprometendo a legalidade e imparcialidade.

Cabe também um comentário final no sentido de que, embora seja possível ao Presidente da República, expedir decretos para regulamentar leis, nos termos do artigo 84, inciso IV da Constituição Federal, desta vez houve extrapolação do poder regulamentar, por completa ausência de delegação expressa de poder de polícia administrativa à Funai.

A imposição de sanções, apreensão de bens ou retirada compulsória de terceiros sem intermediação de outros órgãos, não está prevista nas leis em que a Presidência da República tentou regulamentar por decreto, ou seja, as Leis nº 5.371/1967, nº 6.001/1973 e nº 14.701/2023.

O chamado poder de polícia compreende a possibilidade de restringir direitos individuais para garantir o interesse público, sendo exigido previsão em lei formal (princípio da reserva legal).

A Lei nº 5.371/1967 criou a Fundação Nacional do Índio (Funai) e estabeleceu suas atribuições gerais, como órgão de administração indireta vinculado ao Ministério do Interior (atualmente sob estrutura do Ministério dos Povos Indígenas), com objetivo de proteger e promover os direitos dos indígenas, sem mencionar expressamente o poder de polícia administrativa.

Em outras palavras, esta lei, não confere à Funai poder de polícia administrativa, sendo necessária uma base legal mais específica, pressupondo atuação da Polícia Federal.

E o mesmo vício legal ocorre com a tentativa de regulamentação por meio da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e a Lei nº 14.701/2023 (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas), esta última, que no seu artigo 6º reforça que a proteção das terras indígenas deve ser feita em cooperação com órgãos estatais competentes para fiscalização e repressão (Polícia Federal e Ibama).

Fonte: Scot Consultoria

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ℹ️ Conteúdo publicado por Myllena Seifarth sob a supervisão do editor-chefe Thiago Pereira

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