Pesquisadora do Cepea trás uma nova abordagem quanto a intensificação da sustentabilidade no setor agropecuário e as novas atribuições que isso gera
À medida que a sociedade foi tomando consciência de que a produção agropecuária, em sua forma tradicional, pode não ser sustentável para as próximas décadas, passou a assumir compromissos que redundaram em novas funções para o setor. Além de produzir alimento humano e ração animal, o setor assume também a produção de um importante contingente de matéria-prima para a geração de bioenergia, cuja demanda deve expandir de forma acentuada num horizonte de curto a médio prazos.
A expectativa de que a população mundial atinja 9,1 bilhões de pessoas em 2050 exige a necessidade de se intensificar consideravelmente as produções agrícola e pecuária, visando atender à demanda adicional por alimento. E esse adicional necessário vem sendo estimado em um bilhão de toneladas de cereais e 200 milhões de toneladas de carne ao ano, equivalente a um aumento de 70% do que se produz atualmente [2,3].
Ao longo de décadas passadas, o uso moderno da biomassa aumentou rapidamente em muitas partes do mundo, face às metas estabelecidas no Acordo de Kyoto para a redução na emissão de gás efeito estufa. Estudos têm mostrado que a bioenergia – ou seja, energia obtida a partir de material orgânico não-fóssil de origem biológica –, quando produzida de maneira sustentável, pode reduzir dramaticamente a emissão de CO2. O aumento no preço de petróleo também tem aumentado o interesse na bioenergia. Atualmente, a biomassa representa pouco mais que 10 % do total ofertado de energia (cerca de 50EJ/ano), dos quais dois terços são utilizados por países em desenvolvimento para aquecimento e cozimento. Para 2050, as estimativas do potencial da oferta ainda são bastante variáveis. Se considerados, como exemplo, estimativas que incorporam as expectativas correntes de tecnologia, a demanda por alimento e metas ambientais, chega-se a uma oferta potencial total de 160 a 287EJ, bastante superior ao patamar atual [4].
Adicionalmente, a agricultura mantém um papel decisivo no desenvolvimento de países de menor renda, sendo que, na economia atual, boa parte desses é fortemente dependente do setor. A expansão industrial, seja em economias desenvolvidas, como em desenvolvimento e menos desenvolvidas, ainda é favorecida pelo provimento adequado de alimento e matéria-prima agrícola, de forma a não pressionar o salário nominal e o custo do trabalho para a indústria e setor de serviços, favorecendo o emprego e o crescimento da economia.
Todas estas funções deverão ser atendidas, contando com uma menor disponibilidade de insumos, como trabalho rural, além de limitações no uso de terra e água. E, ao contrário do que se verifica em outros setores produtivos, os insumos básicos para a agricultura são de difícil substituição, podendo ser esgotados, caso não sejam explorados de forma adequada.
Esse cenário indica que haverá a necessidade de uma nova revolução tecnológica para que o aumento de produtividade permita alcançar a produção necessária para atender às demandas delineadas para as próximas décadas. Essa será de natureza diversa das anteriores, envolvendo contração efetiva nos volumes empregados de recursos naturais, o que vem fortalecendo o conceito de Intensificação de Sustentabilidade (IS), definido como um processo envolvendo maior produção empregando menos insumos, particularmente terra [5].
Atualmente, a agricultura é responsável por 26,5% do emprego (ILOSTAT), 37,26% do uso de terra (FAOSTAT), 70% do uso da água extraída (AQUASTAT) e até 24% das emissões de CO2 (IPCC).
A população rural vem se reduzindo, tanto em função da migração para as cidades, como pelo envelhecimento da população. Até 2030, estima-se que a população urbana aumentará em 24,6% e que as pessoas com idade entre 40 e 65 anos ou mais representarão cerca de 40,1% da população global, indicando um menor contingente com potencial para trabalhar na agricultura [3].
Em um contexto global, a área agricultável vem sendo limitada não apenas em sua capacidade de expansão. Já no início da década de 2010, a FAO indicou que 90% do crescimento na produção agrícola global deveria resultar de aumento na produtividade e intensificação do cultivo, com o restante sendo atendido por um aumento de área. Quase toda essa expansão deve ocorrer na América Latina e África Subsaariana, estimada em um total de 120 milhões de hectares. Esse total deve ser parcialmente compensado por uma redução da ordem de 50 milhões de hectares nos países desenvolvidos, de forma que, em termos líquidos, o incremento possível é estimado em cerca de 70 milhões de hectares. Entre 2007 e 2017, observou-se um decréscimo no total de terra cultivada de 1,3%, em grande parte decorrente de degradação, poluição e expansão urbana [3].
O equacionamento da produção com intensificação da sustentabilidade (IS) não se limita, no entanto, a restrições quanto ao acesso de insumos. Outros fatores, como a observação de aspectos éticos na exploração pecuária, conservação de biodiversidade, redução nas emissões e promoção do bem-estar social para os indivíduos empregados no setor são também requisitos do processo.
A transição da produção agropecuária para IS requer, portanto, não apenas a definição de novas tecnologias para aumentar a produtividade dos insumos, como também o planejamento e administração das atividades agroindustriais com enfoques mais abrangentes e universais, visando transformações sociais que tragam melhoras na vida das pessoas.
O desafio é grande e também os esforços necessários para que tais iniciativas sejam bem-sucedidas. Enquanto no plano das negociações, as metas definidas têm exposto a agricultura a desafios cada vez maiores, a importância atribuída ao setor pelos governos e formuladores de política não segue a mesma lógica. Isso é particularmente importante para os países em desenvolvimento e para a agropecuária brasileira.
O Brasil ocupa posição de destaque na produção e exportação de várias commodities, como soja, açúcar, café, laranja, etanol, assim como carne bovina e de frango. Em função disso – e também por se constituir em um dos poucos países com capacidade de expandir a produção, enquanto mantém a biodiversidade e florestas nativas –, espera-se que o Brasil contribua com uma fração significativa da produção adicional de agroalimentos em décadas futuras [6]. Atualmente, o País conta com um potencial de expandir a área agricultável em 103,32 milhões de hectares [7], sendo considerado o celeiro do mundo, pois concentra a maior parcela das áreas agricultáveis no mundo ainda não utilizadas.
Estudo conduzido pela Nasa em colaboração com o Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS) demonstrou que o Brasil protege e preserva a vegetação nativa em mais de 66% de seu território e cultiva apenas 7,6% das terras. Outros países apresentam um percentual bem mais elevado, como a Dinamarca, de 76,8%, dez vezes mais que o Brasil; a Irlanda, de 74,7%; os Países Baixos, de 66,2%; o Reino Unido, de 63,9%; a Alemanha, de 56,9%. A maior parte dos países utiliza entre 20% e 30% do território com a agricultura.
Diversas técnicas para evitar erosão, reduzir externalidades ambientais, com simultâneo aumento de produtividade, já estão disponíveis aos agricultores, ainda que não tenham sido amplamente adotadas [6]. Na medida em que os produtores brasileiros adotarem práticas como rotação de cultura, cultivo mínimo, restauração de áreas de pastagem degradadas e adaptação de sistemas de integração agricultura-pecuária-floresta, estes estarão promovendo importante contribuição para a intensificação da sustentabilidade [6].
A despeito da colaboração que vem sendo proporcionada pela agropecuária brasileira nas novas funções atribuídas ao setor, ainda são poucas as iniciativas que contabilizam sistematicamente os avanços e contribuições proporcionadas no contexto de intensificação da sustentabilidade. Para assegurar o reconhecimento quanto às novas funções desempenhadas, é importante que se desenvolvam medidas equivalentes às empregadas em outros países, para que os avanços e contribuições sejam adequadamente quantificados e reconhecidos. Cabe ao País um maior envolvimento no desenvolvimento de métodos de mensuração da IS que sejam sistematicamente atualizados e internacionalmente reconhecidos.
Heloisa Lee Burnquist
Professora da Esalq/USP e pesquisadora do Cepea
cepea@usp.br
Data de publicação: 24/09/2018
Legenda
[1] Banco Mundial, 2018
[2]: FAO, 2009: Global Agriculture towards 2050
[3]: Euromonitor, 2017
[4]: Haberl, H. et al.: The global technical potential of bio-energy in 2050 considering
sustainability constraints, Environmental Sustainability 2010, 2:394–403.
[5]: Royal Society (2009) Reaping the benefits: science and the sustainable intensification of global agriculture
[6]: Lapola, D. et al 2013 Pervasive transition of the Brazilian mland-use system Nat. Clim. Change 4 27–35
[7]: Scolari, D.D.G. (2006): Produção agrícola mundial: o potencial do Brasil, IN: Visão progressista do agronegócio brasileiro. Brasília, DF: Fundação Milton Campos, 2006.
Fonte: Cepea