
Desse montante, aproximadamente R$ 219 milhões são débitos com a União – principalmente impostos e contribuições previdenciárias não recolhidas – e outros R$ 51 milhões envolvem diversos credores privados, incluindo bancos, pecuaristas e ex-funcionários do frigorífico Boibras.
O frigorífico Boibras, localizado em São Gabriel do Oeste, no Mato Grosso do Sul, enfrenta uma grave crise financeira que o colocou em recuperação judicial desde agosto de 2023. A empresa acumula cerca de R$ 270 milhões em dívidas e corre sério risco de falência. Desse montante, aproximadamente R$ 219 milhões são débitos com a União – principalmente impostos e contribuições previdenciárias não recolhidas – e outros R$ 51 milhões envolvem diversos credores privados, incluindo bancos, pecuaristas e ex-funcionários.
A Boibras Indústria e Comércio de Carnes é conhecida regionalmente por suas marcas Big Beef (rede de açougues) e Nobratta (linha de carnes premium vendida em supermercados). Diante do endividamento crescente, a empresa pediu recuperação judicial em agosto de 2023, numa tentativa de se reorganizar financeiramente e evitar a falência. Na época do pedido, o grupo – que inclui a rede Big Beef e a transportadora RC – empregava cerca de 400 funcionários e realizava o abate de aproximadamente 500 cabeças de gado por dia, evidenciando sua importância econômica para a região.
A recuperação judicial visa negociar prazos e condições de pagamento com credores privados, totalizando R$ 51 milhões fora do âmbito governamental. Esses credores incluem fornecedores (pecuaristas que forneceram gado), ex-colaboradores com verbas trabalhistas em aberto e instituições financeiras.
Tributos federais, porém, ficam excluídos do processo de recuperação judicial, já que pela lei esses créditos fiscais não se submetem ao concurso de credores da empresa em dificuldade. Na prática, isso significa que a dívida de R$ 219 milhões com a União tramita em separado, por meio de execuções fiscais, enquanto o frigorífico tenta se manter operando para honrar ao menos os credores da recuperação. Mesmo em meio à crise, a Boibras conseguiu manter suas atividades: seus produtos continuaram a chegar normalmente aos pontos de venda, segundo informações da administradora judicial.
Justiça impede bloqueio de recursos da Boibras pela União
Um capítulo importante dessa novela financeira ocorreu quando a União tentou bloquear recursos da empresa. Em março de 2025, o juiz José Henrique Neiva de Carvalho Silva, da Vara Regional de Falências em Campo Grande, invalidou uma ordem de bloqueio que havia sido determinada em uma execução fiscal contra a Boibras. A decisão original, da 6ª Vara Federal de Execução Fiscal, buscava reter R$ 151,7 mil das contas do frigorífico para abater parte da dívida tributária. Embora relativamente modesta, essa quantia representava um alívio imediato para o Fisco – mas apenas cerca de 1% do total de R$ 15,3 milhões cobrados nesse processo específico.
O juiz de falências, porém, atendeu aos argumentos dos advogados da Boibras e da administradora judicial, que apontaram conflito de competência e risco à reestruturação da empresa. A defesa sustentou que apenas o juízo da recuperação judicial poderia decidir sobre bloqueios ou liberações de valores durante o processo de soerguimento. Segundo a administradora judicial, congelar os R$ 151,7 mil colocaria em risco a viabilidade do plano de recuperação já homologado, comprometendo pagamentos essenciais para a manutenção das atividades empresariais.
Em outras palavras, tirar esse montante do caixa da companhia poderia inviabilizar salários, fornecedores e outras despesas cruciais previstas no plano de recuperação. Diante disso, o juiz determinou a liberação do valor, assegurando que ele fosse direcionado ao pagamento dos credores no âmbito da recuperação judicial, e não confiscado para a dívida fiscal naquele momento.
Duas empresas, um mesmo endereço
Paralelamente à crise do Boibras, um fato chama atenção: no mesmo endereço físico onde o Boibras opera, funciona outra empresa do setor de carnes vivendo situação oposta. Trata-se da BMG Foods, um frigorífico que iniciou atividades no local em 2021 e que se autoproclama uma das potências do ramo no país. A BMG Foods afirma ser o terceiro maior grupo frigorífico do Brasil em volume de abate, ficando atrás apenas das gigantes JBS e Minerva. Enquanto o Boibras luta para pagar credores e evitar a insolvência, a BMG Foods expande seus negócios e se gaba de estar em ascensão no mercado nacional.
A convivência das duas empresas no mesmo parque industrial escancara um paradoxo. Boibras e BMG Foods dividem praticamente a mesma estrutura física em São Gabriel do Oeste, chegando ao ponto de compartilharem o local de abate de bovinos. Formalmente, para efeitos de registro, há uma diferenciação sutil no endereço e, claro, cada qual possui CNPJ próprio.
O frigorífico Boibras está registrado no km 606 da BR-163, zona rural do município, enquanto a BMG Foods consta no mesmo km 606, porém nas salas 1, 2 e 3 do mesmo complexo. Ou seja, mudam os papéis e razão social, mas os portões de entrada e a planta industrial são, na essência, os mesmos. Essa proximidade física ressalta o contraste entre duas realidades opostas: de um lado, um frigorífico atolado em dívidas; de outro, uma empresa que opera no mesmo local com folga financeira e projeção de crescimento.
Acusações de sonegação fiscal
Outro ponto em comum une as duas companhias além do endereço: os responsáveis por ambas já estiveram envolvidos em acusação de sonegação de impostos. No caso do Boibras, seu proprietário Régis Luiz Comarella é investigado pelo Ministério Público Federal sob suspeita de ter sonegado valores milionários em tributos. Já na história da BMG Foods desponta o nome de Jair Antônio de Lima, figura carimbada no setor frigorífico nacional que, nos anos 2000, ganhou notoriedade não apenas pelos negócios de carne bovina, mas também por frequentes denúncias de sonegação fiscal.
Jair de Lima foi um dos controladores do extinto Grupo Torlim, conglomerado que chegou a administrar vários frigoríficos e extensas fazendas de gado em diferentes estados do Brasil. Em 2004, uma investigação indicou que o grupo Torlim teria sonegado pelo menos R$ 70 milhões em contribuições previdenciárias devidas à União. As operações ilícitas incluíam, segundo a Polícia Federal, a emissão de notas fiscais “frias” (falsas), contrabando de gado vindo do Paraguai e uso de “laranjas” (testas de ferro) para ocultar os verdadeiros beneficiários. Como consequência, na época foram bloqueadas 17 fazendas e dezenas de veículos (caminhões e camionetes) pertencentes ao grupo. O império começou a ruir diante das ações da Justiça.
Após o desmantelamento do Grupo Torlim no Brasil, a única frente de negócio que permaneceu ativa foi a operação paraguaia. Essa operação hoje é conhecida como Frigorífico Concepción, uma das maiores exportadoras de carne bovina do Paraguai. Alguns anos depois, Jair de Lima voltou ao ramo frigorífico brasileiro justamente com a BMG Foods, lançada em 2021. A própria empresa se apresenta publicamente como “nascida do grupo Concepción – um dos maiores frigoríficos do Paraguai, com mais de 27 anos de história – chegando ao Brasil em 2021” e que em pouco tempo se consolidou como uma das principais produtoras e exportadoras de carne do país.
Em suma, a BMG Foods seria a sucessora nacional dos negócios de Jair de Lima, agora sob uma roupagem legal renovada, enquanto o Boibras de Comarella enfrenta os problemas semelhantes aos que já levaram outros empreendimentos do grupo antigo à ruína.
Impacto para fornecedores, trabalhadores e região
Os desdobramentos da crise do Boibras afetam diretamente fornecedores, funcionários e o mercado local de carnes. Pecuaristas da região que venderam gado ao frigorífico e ex-funcionários que ficaram sem receber seus direitos estão entre os credores na recuperação judicial, somando dezenas de milhões de reais a receber.
Muitos desses credores enfrentam a perspectiva de uma longa espera – possivelmente até a próxima década para reaverem seus valores devidos – isso se conseguirem receber algo, a depender do sucesso (ou fracasso) do plano de recuperação. Enquanto aguardam, esses fornecedores perdem capital de giro e os trabalhadores arcam com prejuízos pessoais, o que gera insegurança na cadeia produtiva regional.
A situação atual também levanta questionamentos no setor de carnes de Mato Grosso do Sul. São Gabriel do Oeste, importante polo pecuário, convive simultaneamente com o risco de um grande frigorífico local fechar as portas e com a operação pujante de outro frigorífico de porte nacional no mesmo endereço. Esse contraste acende um alerta sobre a concorrência e a gestão empresarial no ramo: afinal, como uma empresa pode falir enquanto outra prospera lado a lado?
Para as autoridades e agentes do mercado, o caso Boibras/BMG Foods tornou-se emblemático, evidenciando a necessidade de maior fiscalização financeira e trabalhista, além de políticas que garantam um ambiente mais equilibrado para os negócios. Em meio a essa dualidade, fornecedores e trabalhadores esperam por uma resolução justa – seja pela efetiva recuperação do Boibras ou por outras vias legais – que minimize os prejuízos e preserve a confiança na indústria da carne na região.
Fontes: Documentos judiciais e reportagens do Correio do Estado sobre o caso Boibras, incluindo decisões judiciais e investigações ligadas ao frigorífico e à BMG Foods. As informações foram apuradas com base nos dados oficiais da recuperação judicial e em notícias de março e abril de 2025 sobre a empresa.
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