
Das plantações ao copo, descubra como as mudanças climáticas estão alterando o sabor da cerveja que você está tomando.
A cerveja, bebida milenar e símbolo de encontros sociais, está passando por transformações que vão muito além do mero gosto. O que antes era considerado uma receita imutável — a combinação de lúpulo, levedura e cevada maltada — agora enfrenta o impacto das mudanças climáticas. Novos estudos apontam que a qualidade e o perfil dos ingredientes, principalmente o lúpulo nobre e a cevada, podem alterar significativamente o sabor da cerveja que apreciamos.
Pesquisadores da Academia de Ciências do Instituto de Pesquisa de Mudanças Globais da República Tcheca, liderados por Mirek Trnka, revelam que as condições ambientais em transformação estão ameaçando a produção dos insumos fundamentais para a fabricação da cerveja. Segundo o estudo, as culturas tradicionais — aquelas utilizadas há décadas pelas cervejarias para elaborar as clássicas lagers europeias — estão se tornando mais difíceis de cultivar.
Em algumas das principais regiões produtoras de lúpulo na Europa, a produção dos chamados lúpulos nobres já diminuiu 20% desde a década de 1970. Além disso, as projeções indicam que os níveis de ácidos alfa — os compostos responsáveis pelo amargor característico da cerveja — podem cair até 31% até 2050. Esse cenário levanta a questão: estaríamos diante de uma verdadeira crise existencial para uma das bebidas mais populares do mundo?
A trajetória da cerveja é tão antiga quanto a própria civilização. Evidências de bebidas fermentadas à base de grãos foram encontradas em sítios arqueológicos na China, com registros que datam de 5700 a.C., e em sociedades pré-colombianas, como a cultura Moche. No Oriente Próximo, os antigos mesopotâmicos já registravam o consumo dessa bebida em textos e selos cuneiformes.
Inicialmente, o lúpulo era incorporado principalmente como um conservante. Durante a Idade Média, descobriu-se que ele possuía propriedades antimicrobianas capazes de preservar a cerveja por mais tempo, evitando que azedasse. Antes da Revolução Industrial, o processo de secagem do lúpulo no fogo conferia um sabor defumado, que contrastava com as cervejas mais leves e lupuladas que surgiriam posteriormente com a introdução do aço inoxidável e novas técnicas de produção.
O equilíbrio entre o amargor do lúpulo e a doçura do malte tornou-se, com o tempo, uma arte refinada. Estilos como as Indian Pale Ales (IPAs) são um exemplo claro de como o teor de ácidos alfa é essencial para criar o perfil amargo desejado, revelando uma conexão intrínseca entre tradição e inovação na produção cervejeira.
À medida que os efeitos das mudanças climáticas se intensificam, produtores de lúpulo e cervejarias enfrentam o desafio de preservar o sabor clássico sem abrir mão da inovação. Entre as possíveis soluções, destacam-se:
- Realocação de cultivos: Transferir as plantações para áreas com lençóis freáticos mais elevados, como vales e regiões próximas a cursos d’água, pode facilitar a absorção de água pelas raízes das plantas.
- Irrigação por gotejamento: Embora comum na América do Norte, a implementação dessa tecnologia na Europa é ainda um desafio devido aos custos elevados.
- Desenvolvimento de novas variedades: Pesquisadores e agrônomos estão empenhados em criar lúpulos com estruturas radiculares mais profundas e resistentes à seca. Essas inovações têm ganhado espaço, especialmente entre cervejarias artesanais, que buscam explorar perfis de sabores diferenciados.
Thomas Shellhammer, professor de ciência da fermentação na Universidade Estadual do Oregon, ressalta que mesmo com o uso da irrigação, temperaturas extremas — chegando a cerca de 46°C — podem interromper o crescimento das plantas e favorecer o surgimento de doenças. Por outro lado, Chuck Skypeck, diretor técnico da Brewers’ Association nos EUA, destaca as dificuldades inerentes à troca de variedades em culturas perenes como o lúpulo, comparando o processo com a complexidade de substituir uma videira inteira na produção de vinho.
Na prática, muitos produtores norte-americanos já experimentam a substituição gradual de variedades, conseguindo manter até 75% da produção no primeiro ano de mudança. Entretanto, essa adaptação exige tempo, investimentos e uma análise meticulosa para preservar as características tradicionais das cervejas.
Apesar dos desafios impostos pelas mudanças climáticas, há motivos para otimismo. As cervejarias, tanto as artesanais quanto as de grande escala, estão se reinventando e diversificando suas receitas para compensar as flutuações na qualidade dos ingredientes. Em muitos casos, a mistura de diferentes variedades de lúpulo permite ajustar camadas de sabores e aromas, garantindo a continuidade de uma experiência única para os consumidores.
Christian Ettinger, fundador da Hopworks Urban Brewery em Portland, ressalta a importância da adaptação e inovação:
“Selecionar lúpulos e fazer previsões é um trabalho que exige análise detalhada e constante ajuste de receitas.”
Essa abordagem tem sido crucial para manter a competitividade, especialmente em um mercado onde a sustentabilidade e a redução da pegada ambiental são prioridades crescentes.
Além disso, práticas agrícolas regenerativas, como o cultivo de cobertura e o uso de biochar para melhorar a retenção de água no solo, têm se mostrado promissoras. Essas técnicas não só auxiliam na mitigação dos efeitos da seca, mas também promovem uma produção mais sustentável e econômica.
A cerveja, com seus mais de 9 mil anos de história, continua a ser uma bebida que une tradição e inovação. Embora as mudanças climáticas representem um desafio significativo para a produção dos ingredientes clássicos, a indústria cervejeira está se mobilizando para encontrar soluções que preservem o sabor e a identidade das cervejas que tanto amamos. A adaptação dos métodos de cultivo e o desenvolvimento de novas variedades de lúpulo demonstram que, mesmo diante de um cenário incerto, a paixão e a criatividade dos cervejeiros garantem que a produção da bebida não apenas continue, mas evolua para enfrentar os desafios do futuro.
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