Redução do poder de compra já prejudica até o leite longa vida; expectativa é que as vendas do produto, básico, amarguem diminuição de até 10% neste ano
Com a queda do poder de compra em tempos de inflação e alta taxa de desemprego no país, é comum que o consumidor tire produtos da lista de supermercado. Os reflexos de cenários como esse costumam bater rapidamente na porta da cadeia de lácteos, sobretudo nas vendas de itens como iogurte ou creme de leite, mais caros e considerados descartáveis para as faixas de renda mais baixas em época de vacas magras. O que chama a atenção agora, entretanto, é que mesmo o leite UHT — a commodity do segmento — também começa a ser deixado de lado.
“Em [muitos] anos conversando com indústrias, nunca tinha ouvido falar em retração de vendas de leite longa vida como ouço agora”, diz Rosana de Oliveira Phitan e Silva, pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola (IEA), ligado à Secretaria da Agricultura de São Paulo. A indústria projeta que o volume comercializado será de 8% a 10% menor que os 6,9 bilhões de litros vendidos em 2020, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Lácteos Longa Vida (ABLV).
Os números definitivos sairão apenas no ano que vem, mas o recuo “é um fato”, afirma Laércio Barbosa, presidente da entidade. A tendência de retração intensificou-se no segundo semestre. “Vimos queda apenas em 2018”, lembra ele. Foi quando a greve dos caminhoneiros prejudicou o transporte de leite e afetou a comercialização — ainda assim, a queda naquele ano foi de apenas 2%.
O esfriamento das vendas de leite UHT e a troca por marcas mais baratas, outro comportamento identificado pelo IEA, criam mais desafios à cadeia produtiva, que precisa planejar os próximos passos em cenário de escalada inflacionária e com um horizonte nebuloso para ferramentas importantes de apoio aos mais pobres. O Auxílio Emergencial, reforça Phitan e Silva, contribuiu para que muitas famílias mantivessem o consumo de bens como o leite.
Fim de ano
A tendência, em cada fim de ano, é de alta dos preços de carnes, leite e derivados. Mas, em um ano atípico como este, especialistas afirmam que não há muito espaço para isso. “Os preços já estão elevados. Mesmo que a inflação suba menos em 2022, não há perspectiva de recuo. Isso porque há custos represados [na cadeia produtiva] que sequer foram repassados”, afirma Guilherme Moreira, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fipe.
Para o consumidor, o leite longa vida subiu 6% entre janeiro e outubro, apontou o IPC-Fipe no último relatório com dados mensais. Já o grupo de derivados lácteos, que reúne iogurte, manteiga, queijos, requeijão, entre outros produtos, aumentou quase 14% no mesmo período. A margarina, por exemplo, ficou 25% mais cara, e o queijo fresco acumula alta de 22% desde janeiro.
Insumos mais caros
O aumento nas gôndolas reflete o encarecimento dos insumos desde o campo. Nas fazendas, o milho, um dos principais componentes de alimentação do rebanho, subiu 56,5% desde o ano passado — para o cálculo, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/Esalq/USP) comparou as médias de preços no período entre os meses de janeiro e outubro de 2020 e de 2021. Com isso, o litro de leite vendido pelo agricultor para a indústria sofreu reajuste real de quase 21% de um ano para o outro, para R$ 2,24 no campo (média Brasil) — os dados são deflacionados. A indústria vem praticando repasses nos três principais grupos de produtos observados pelos pesquisadores em São Paulo, um mercado formador de preços. Porém, apesar da alta real média de 21% da matéria-prima no campo, o reajuste do leite UHT no atacado foi de 2,8%, o da muçarela chegou a 3,1% e o do leite em pó, 10%, consideradas as médias do mesmo período (também dados reais). “Apesar dos reajustes, nenhum elo da cadeia conseguiu ainda repassar a alta dos custos de produção”, resume Natália Grigol, pesquisadora do Cepea.
Repasse limitado
A indústria conseguiu repassar um pouco mais até julho. “Mas a situação se deteriorou a partir de agosto, pressionando mais as margens”, diz Grigol. Além do leite cru, também subiram energia, combustíveis e embalagens. Sem espaços para novas altas, o foco da indústria é reduzir custos. A Embaré, que anunciou em outubro sua fusão com a Betânia — o acordo está em análise no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) —, conta nesse sentido com o apoio de sua Comissão Interna de Conservação de Energia, equipe multidisciplinar criada há alguns anos e que ganhou força em 2020.
“Trabalhamos o tempo todo para reduzir gastos de energia, de água e outros produtos”, afirma Vinícius Rezende, diretor industrial da companhia. Em outra frente, a da otimização de ganhos, a Embaré opera em estratégia de curtíssimo prazo desde março do ano passado. Isso quer dizer que a decisão sobre o destino do leite captado — quanto do volume vai para as linhas de UHT, requeijão, iogurtes ou outras — é tomada mês a mês. Antes da pandemia, as definições aconteciam em médio ou longo prazos. A Embaré, vale ressaltar, trabalha com ao menos 80 tipos de produtos. Laticínios com menos opções no portfólio enfrentam maiores desafios para obter resultado em períodos como esse.
“Tempestade perfeita”
O mercado externo, um escape para as indústrias quando o consumo interno está mais fraco, também apresenta dificuldades, de logística. Pelos desafios em tantas frentes, Rezende classifica o momento como uma “tempestade perfeita”. “Mas o mercado se ajeita”, afirma. A busca pelo ajuste em custo continua. Após a chegada da safra de leite no país, em setembro, o preço da principal matéria-prima começou a ceder. “Mas a safra é apenas um elemento agora. A queda do consumo tem deixado as indústrias estocadas e isso é que afeta o comportamento de preços pagos ao produtor”, avalia Grigol, do Cepea.
Não parece haver horizonte azul em curto prazo para os elos da cadeia. Mas é conhecida a resiliência dos laticínios, que diversificam linhas em busca de consumidores, queimam margens para mantê-los e, entre suas estratégias, ao menos desde 2014 lidam com os efeitos do esfriamento da economia sobre os seus negócios, já que boa parte dos lácteos é sensível aos efeitos da perda de renda. Com isso, uma nova onda de fusões pode mover esse mercado.