
Os peões esperavam ver um cavalo de faroeste, como nos filmes de Roy Rogers. Mas o que desembarcou foi mais do que isso: um Quarto de Milha legítimo, puro sangue King Ranch, com força, agilidade e presença de rei. A partir daquele dia, o Brasil rural nunca mais seria o mesmo.
A King Ranch, fundada em 1853 pelo capitão Richard King, tornou-se uma lenda da pecuária nos Estados Unidos. Com impressionantes 825 mil acres (mais de 3.300 km²), foi por muito tempo o maior rancho dos EUA – um império territorial maior que o estado de Rhode Island. Além de criar gado de corte, o rancho texano se destacou pela criação de cavalos de alta qualidade. Old Sorrel, um de seus garanhões base, deu origem a linhagens fundamentais do cavalo Quarto de Milha. Prova disso é Wimpy, descendente direto de Old Sorrel, que recebeu o registro número P-1 (o primeiro) da recém-formada American Quarter Horse Association em 1940. Ou seja, desde a origem oficial da raça, a King Ranch já brilhava como berço de campeões.
Nos anos seguintes, a fama da King Ranch só cresceu. O rancho produziu até um vencedor da Tríplice Coroa do turfe americano – o cavalo Assault, em 1946 –, demonstrando sua excelência também nas pistas de corrida. Com esse histórico de inovação – que incluía até o desenvolvimento de uma nova raça de gado, o Santa Gertrudis, reconhecida oficialmente em 1940 – a King Ranch olhava além das fronteiras dos EUA. No início da década de 1950, o então presidente do rancho, Robert J. Kleberg Jr., vislumbrou novas fronteiras para expandir seus negócios agropecuários. O destino escolhido? O Brasil, com suas vastas planícies e enorme potencial ranchista.
1953: A missão King Ranch desembarca no Brasil
Em 1953, a gigante King Ranch cruzou fronteiras para fincar bandeira em solo brasileiro. Robert Kleberg Jr. liderou uma missão ambiciosa de expansão, atraído pelas terras férteis e pelo clima favorável à pecuária. Nascia assim a Swift King Ranch Brasil S/A, fruto de uma parceria internacional que uniu a expertise texana ao potencial do agronegócio do Brasil. Kleberg enviou uma equipe de confiança para comandar a operação sul-americana – e entre os nomes destacados estava o do executivo Francis Herbert, homem de perfil visionário que logo se tornaria peça-chave dessa história.
Chegar ao Brasil naquela época significava enfrentar desafios logísticos dignos de filme. Mesmo assim, a King Ranch do Brasil estabeleceu sua base na Fazenda Laranja Doce, localizada no interior do país (em Goiás, segundo registros orais da região, embora as memórias variem). Era ali que a tradição vaqueira norte-americana iria encontrar o talento dos peões brasileiros, sob a direção de Francis Herbert. Com um estilo de gestão firme, porém gentil, Herbert assumiu o comando da fazenda, alinhando a eficiência texana à cultura local. Não demorou para que os brasileiros começassem a ouvir rumores sobre cavalos “importados do Texas” chegando para revolucionar as comitivas e boiadas nacionais.
O dia em que Saltillo Jr. pisou em solo brasileiro
Em uma manhã histórica de meados da década de 1950, um trem carregado de carga viva parou apitando na pequena estação próxima à Fazenda Laranja Doce. Os peões curiosos se aglomeraram, ansiosos pelo desembarque incomum. Muitos deles tinham assistido aos faroestes de Hollywood e imaginaram que, de dentro daqueles vagões, surgiria um corcel digno dos filmes de Roy Rogers – o famoso cowboy cantor cujos cavalos de pelagem dourada encantavam o público.
Porém, o que eles viram ao abrir das porteiras foi ainda mais impressionante: dali desceram sete éguas e um garanhão de musculatura escultural, animais reais de carne e osso, radiantes de saúde e vigor. À frente do grupo vinha Saltillo Jr., um alazão tostado de temperamento calmo e peito largo, que entraria para a história como o primeiro cavalo Quarto de Milha a pisar em solo brasileiro.
Saltillo Jr. era um legítimo Quarter Horse texano, nascido em 1947 e selecionado pela King Ranch por sua genética de ponta. Quando seu casco tocou a terra brasileira, iniciava-se simbolicamente uma nova era na equinocultura do país. As éguas importadas que o acompanhavam – cada uma trazendo no ventre a promessa de futuros potros – também eram de linhagens consagradas. Juntos, esse garanhão e suas sete damas formariam o núcleo pioneiro da raça Quarto de Milha no Brasil.

Os peões logo perceberam que aqueles animais não eram meros figurantes de cinema: em poucos dias, viram Saltillo Jr. mostrar seu valor trabalhando no pasto, arrancando em disparada curta para apartar um boi fujão com uma agilidade nunca antes vista por aqui. O encantamento foi instantâneo. A lenda trazida do Texas começava a criar raízes nos campos brasileiros.
Francis Herbert: o construtor de pontes culturais
Por trás desse início promissor, estava a liderança discreta e eficiente de Francis Herbert. Enviado para gerir a King Ranch do Brasil, Herbert não apenas introduziu técnicas modernas de manejo, como também soube respeitar e incorporar a sabedoria local dos vaqueiros. Com um estilo de comando firme e ao mesmo tempo gentil, ele ganhou rapidamente o respeito e o carinho de sua equipe.
Sob sua direção, a Fazenda Laranja Doce tornou-se um verdadeiro laboratório a céu aberto, onde a tradição cowboy norte-americana e a tradição sertaneja brasileira aprendiam uma com a outra. Herbert colheu resultados notáveis, mas deixou algo ainda mais valioso: um legado humano e cultural. Décadas mais tarde, seu trabalho pioneiro seria reconhecido formalmente. A ABQM concedeu a Francis Herbert o título honorário de Sócio Benemérito, uma homenagem reservada a quem presta contribuições excepcionais à raça no país.

A difusão do Quarto de Milha e a fundação da ABQM
O sucesso inicial da King Ranch Brasil plantou a semente de um florescente mercado de Quarto de Milha no país. Ao longo dos anos 1960, outros fazendeiros e entusiastas passaram a importar garanhões e éguas dessa raça, impulsionando a criação local. Em 1969, fundou-se a ABQM (Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha) – entidade dedicada a registrar os animais e promover a raça oficialmente.
Curiosamente, o primeiro registro nº 1 do stud book brasileiro não foi de Saltillo Jr., mas sim de um garanhão chamado Caracolito – também de linhagem King Ranch. O que começou com um grupo de oito cavalos importados transformou-se em uma população equina enorme. Hoje, já são mais de 680 mil Quarto de Milha registrados no Brasil, fazendo desta a maior raça de equinos do país.
Impacto no esporte, na genética e na cultura brasileira
A introdução do Quarto de Milha revolucionou as atividades equestres no Brasil. Geneticamente, esses animais agregaram velocidade, docilidade e resistência às criações locais. No Nordeste, o Quarto de Milha se tornou o cavalo preferido nas vaquejadas. No Sul, conquistou espaço ao lado (e até acima) do cavalo Crioulo. Em modalidades como provas de laço, tambor, apartação e rodeio, passou a dominar arenas com sua explosão muscular e inteligência natural.
Culturalmente, a chegada desses cavalos trouxe uma troca enriquecedora: expressões, técnicas e o estilo cowboy foram se misturando às tradições locais. Eventos, revistas especializadas e provas como as corridas de cancha reta no Jockey de Sorocaba tornaram-se ícones dessa fusão.
Legado e curiosidades históricas
Do ponto de vista histórico, o legado da King Ranch é inegável. A aventura iniciada em 1953 pavimentou o caminho para uma transformação profunda na equideocultura nacional. Hoje, o sangue trazido por Saltillo Jr. pulsa nas veias de milhares de campeões brasileiros.
Uma curiosidade interessante é o “registro número 1” da raça: se nos EUA Wimpy P-1 marcou o início da linhagem Quarto de Milha, no Brasil foi Caracolito R-1, também ligado à King Ranch, que assumiu o posto inaugural.
E outra história que encanta: os peões esperavam encontrar o “cavalo americano de filme” – o famoso Trigger, do Roy Rogers. Mas o que desceu do vagão era real, musculoso, imponente. Era Saltillo Jr. – e com ele, começava a lenda do cavalo que conquistou o Brasil.
Quer ficar por dentro do agronegócio brasileiro e receber as principais notícias do setor em primeira mão? Para isso é só entrar em nosso grupo do WhatsApp (clique aqui) ou Telegram (clique aqui). Você também pode assinar nosso feed pelo Google Notícias.