Com gado e agro, Governo vai recuperar áreas degradadas da Amazônia e do Cerrado

Produtor receberá financiamento para que locais desmatados pela exploração de gado voltem a ser produtivas ao setor. Ambientalistas questionam a fiscalização e a segurança dos biomas. Veja como o governo prevê recuperar áreas degradadas da Amazônia e do Cerrado com gado e agro, mas sem reflorestar

Para combater o desmatamento, o governo federal lançou um plano focado na recuperação de áreas de pastagem degradadas em biomas nacionais, incluindo a Amazônia e o Cerrado. Este programa promove atividades como a pecuária, o cultivo de lavouras de soja e milho, e até a exploração de madeira.

Essa estratégia, contudo, tem sido objeto de críticas por parte de ambientalistas. Eles argumentam que ela beneficiará direta ou indiretamente os produtores agrícolas, tanto grandes quanto pequenos, possibilitando-lhes acessar financiamento pelo BNDES para revitalizar terras que foram muito exploradas pela agropecuária, perdendo sua produtividade e sendo posteriormente negligenciadas.

A iniciativa abrange uma vasta extensão de terras, totalizando 40 milhões de hectares, o que excede a dimensão do estado de Mato Grosso do Sul. Em todo o Brasil, estima-se que cerca de 109 milhões de hectares de pastagens estejam em algum grau de degradação, conforme informações fornecidas pela Universidade Federal de Goiás.

Pastagens que alcançam um nível crítico de deterioração são invadidas por espécies nocivas como plantas invasoras e cupins, acelerando a erosão. Isso impede o renascimento da vegetação nativa.

O programa foi estabelecido por um decreto divulgado em dezembro último, tendo sido apresentado durante a COP 28, o evento global sobre o clima. Atualmente, um grupo de trabalho composto por integrantes de vários ministérios e representantes da sociedade civil está debatendo normas e orientações para a implementação do programa, as quais serão anunciadas até o final de maio.

O governo justifica a medida com base em dois pilares principais:

Custo bilionário: As pastagens deterioradas estão inativas e necessitam de recuperação do solo para restabelecer sua fertilidade e produtividade. Tal restauração demanda um investimento substancial, estimado em R$ 600 bilhões. O intuito é captar recursos do setor privado, já que o financiamento deste montante é inviável para o Estado. De acordo com estudos da USP, o agronegócio contribui com mais de 20% do PIB nacional, ultrapassando R$ 2 trilhões.

Prevenção ao desmatamento: A agropecuária é a principal causa de desmatamento no país. O programa visa incentivar os produtores a reutilizarem áreas já degradadas, evitando a destruição de novas áreas de vegetação nativa.

Contudo, a iniciativa tem sido motivo de preocupação para especialistas, que destacam:

Vulnerabilidade na fiscalização ambiental: Existe o temor de que o governo não consiga realizar um acompanhamento eficaz, o que poderia resultar em avanço ilegal sobre áreas de mata nativa, ameaçando ainda mais os biomas.

Necessidade de mais estudos: As pesquisas atuais sobre as áreas degradadas são insuficientes, carecendo de detalhamento para confirmar a real situação dessas áreas. Além disso, não está claro se terras públicas serão excluídas do programa.

Divergências científicas: Existe um debate sobre se a utilização dessas áreas para agricultura é realmente a opção mais sustentável e eficaz na captura de carbono, principalmente considerando que a pecuária é uma das atividades que mais poluem.

Dificuldades na fiscalização: O programa promete apoiar apenas projetos que, em uma década, consigam reduzir emissões ou aumentar a captura de carbono. Porém, esse monitoramento é complexo e custoso, sem definições claras de como será realizado ou se os custos serão cobertos pelos empreendedores.

Falta de transparência: Ambientalistas criticam a falta de clareza no debate sobre o programa. As áreas elegíveis estão distribuídas por todos os biomas do país, mas suas localizações exatas são desconhecidas. Há um apelo por consultas públicas sobre o tema.

Domínio do setor agropecuário: O comitê responsável por definir as regras do programa é majoritariamente composto por representantes da agropecuária, com limitada participação da sociedade civil, majoritariamente por entidades do setor.

Áreas destinadas ao programa que vai recuperar áreas degradadas da Amazônia e do Cerrado

Conforme informações divulgadas pelo G1, o objetivo do programa governamental é, em dez anos, converter 40 milhões de hectares em terras aptas para a agricultura. Esse volume equivale a cerca de 40 milhões de campos de futebol, distribuídos por todo o território nacional.

É provável que essas áreas estejam situadas em propriedades privadas, a exemplo de fazendas e sítios. A expectativa é que terras de domínio público, como unidades de conservação e territórios indígenas, não sejam inclusas no programa, embora ainda não existam confirmações oficiais a esse respeito.

Atualmente, o Brasil conta com 109 milhões de hectares de pastagens em algum estágio de degradação. O plano do governo inclui a implementação de outras iniciativas voltadas à recuperação dos biomas nacionais, abrangendo projetos de agrofloresta, reflorestamento e apoio financeiro ao setor agropecuário.

A equipe do G1 dialogou sobre este programa com especialistas em meio ambiente, ativistas ecológicos, representantes do agronegócio e um membro do Ministério do Meio Ambiente indicado para o comitê gestor.

Houve também uma tentativa de contato com o Ministério da Agricultura. Uma entrevista foi agendada para o dia 29 de fevereiro com Carlos Augustin, assessor especial do ministério, porém, o compromisso não se concretizou, e, até o momento da última atualização desta reportagem, a equipe do G1 não recebeu retorno nem esclarecimentos sobre as dúvidas apresentadas.

Cerrado bateu recorde de desmatamento mesmo em ano em que governo reforçou fiscalização — Foto: Moisés Muálem/WWF-Brasil

Confira 5 pontos sobre o programa

1 – Tratamento correto para a área

A recuperação de pastagens degradadas é uma preocupação constante entre especialistas e ambientalistas, que sugerem o reflorestamento como solução ideal, apesar de seu alto custo para o governo. A alternativa adotada envolve investimento do setor privado, possibilitando a produção agropecuária em áreas já desmatadas, o que ajudaria a evitar novos desmatamentos. Especialistas, como Ana Carolina Crisostomo do WWF, e André Guimarães do Ipam, reconhecem o potencial positivo da medida, mas alertam para a necessidade de cautela na sua implementação.

O governo, por meio de Fabíola Zerbini, do Ministério do Meio Ambiente, reconhece a recuperação de pastagens como uma estratégia viável para diminuir a pressão por novas terras, embora haja debates sobre sua eficácia. A Frente Parlamentar da Agropecuária apoia a iniciativa, destacando seu alinhamento com práticas sustentáveis e a importância do apoio estatal para promover a sustentabilidade na agricultura.

2 – Fiscalização

Especialistas expressam preocupação com a exploração de áreas degradadas próximas a locais preservados, uma questão reconhecida até mesmo por decretos governamentais, apesar da falta de diretrizes claras sobre fiscalização ou penalidades para novos desmatamentos. Em resposta, o governo intensificou as ações de fiscalização pelo Ibama e ICMBio em 2023, aumentando-as em 200% e conseguindo reduzir, mas não eliminar, o desmatamento significativo na Amazônia e um recorde de desmate no Cerrado.

Laerte Ferreira, geólogo e referência em monitoramento de pastagens degradadas, enfatiza a importância de preservar os biomas e desenvolver um plano que não apenas recupere as áreas degradadas para aumentar a produtividade, mas também proteja os biomas. Ele advoga por uma consulta pública antes da implementação de tais medidas.

Fabíola Zerbini, representando o Ministério do Meio Ambiente no comitê gestor, assegura que a participação do ministério visa garantir a execução do projeto com todas as proteções ambientais necessárias.

3 – Impacto ambiental

Especialistas questionam o papel da agropecuária no contexto de recuperação de áreas degradadas, apontando que a agricultura, especialmente o cultivo de soja e milho, é preferível devido à sua capacidade de manter alguma forma de vegetação. Em contraste, pastagens promovem vegetação rasteira com menor capacidade de captura de carbono e contribuem para emissões de metano pelo gado, exacerbando a poluição.

João Paulo Franco da CNA argumenta contra a conversão forçada de produtores de gado para agricultura, considerando as condições locais e a experiência dos produtores. Por sua vez, Luciana Gatti do Inpe critica a inclusão da pecuária no projeto, destacando a contradição entre promover uma atividade altamente poluente e os objetivos de captura de carbono do projeto.

Produção permitida nas áreas inclui soja, milho e até madeira para corte — Foto: Willam Roth/Divulgação

4 – Transparência na classificação das áreas

Existe preocupação sobre como o governo garantirá a inclusão apenas de áreas degradadas, sem potencial de reflorestamento, nos incentivos para o agronegócio. Atualmente, não há um método oficial para identificar tais áreas, embora existam dados da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do MapBiomas, que não participam do comitê gestor. Laerte Ferreira, pesquisador da UFG, salienta a necessidade de trabalho de campo para confirmar a degradação das áreas. Ele e Luciana Gatti do Inpe expressam preocupação de que áreas que poderiam servir para compensação ambiental sejam destinadas à agropecuária sem a devida verificação.

A categorização da degradação em alta, média ou baixa é crucial, pois determina o investimento necessário para a recuperação. João Paulo Franco, da CNA, enfatiza a importância de uma avaliação cuidadosa para estimar os custos de conversão do solo degradado. O Ministério do Meio Ambiente reconhece a falta de clareza sobre quais áreas estão degradadas, mas afirma que esforços estão sendo feitos para resolver essa questão.

5 – Financiamento

A recuperação de áreas degradadas é um desafio financeiro significativo, com o Ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, estimando o custo em US$ 3 mil por hectare, totalizando US$ 120 bilhões para restaurar 40 milhões de hectares. Isso contrasta com o orçamento de R$ 14 bilhões do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima em 2024.

Para superar isso, o governo planeja atrair investimentos internacionais através do BNDES, criando um fundo de recuperação para financiar projetos a juros reduzidos, potencialmente incluindo recursos do Fundo Amazônia. Essa estratégia é vista como essencial para combater o desmatamento e atingir a meta, estabelecida na COP 26, de recuperar 30 milhões de hectares até 2030. O sucesso depende, entretanto, das condições financeiras oferecidas aos produtores e empresários.

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